Capítulo 03
Desde que as ruas de Yoyogi foram refeitas para as Olimpíadas de Tóquio de 1964, o caráter da área mudou completamente. Ainda assim, se você saísse das estradas principais, seguia havendo um pouco da atmosfera antiga. Aqui e ali pegava vestígios das encostas íngremes que o artista Ryusei Kishida havia retratado em sua pintura de 1915 Kiritoshi no shasei (“Estrada cortada através de uma colina”). É claro, aquela famosa vista de terra vermelha irregular havia se tornado asfalto cinza há muito tempo, e não havia um único tufo de grama selvagem para ser visto, mas longas extensões dos famosos muros de pedra haviam sido reparadas e alinhadas em ambos os lados da rua. Casas de luxo e grandes prédios de apartamentos preenchiam a terra vazia além dos muros. A paisagem desolada pela qual Kishida se apaixonou quando se mudou para Yoyogi no início do século XX era agora uma zona residencial privilegiada.
Asai caminhou lado a lado com sua cunhada ao longo de uma das ruas principais que cruzavam a famosa estrada kiritoshi. Era ladeado pelo tipo de comércio de luxo popular em bairros ricos. Era uma tarde quente para meados de março, e o suor escorria pela sua nuca, molhando seu cachecol de inverno.
Conforme subiam a colina, havia mais dessas casas familiares espaçosas construídas em aterros acima dos muros de pedra. Esta área, com suas casas maiores, nunca havia sofrido danos de bombas na guerra, então um bom número ainda permanecia. Espalhados entre elas haviam casas e prédios de apartamentos mais novos.
Miyako estava andando um ou dois passos à frente de Asai, carregando uma cesta de frutas no braço.
— É uma butique muito pequena, escondida sozinha, bem no meio de todas essas mansões. — explicou para Asai enquanto o guiava. — É difícil lembrar exatamente aonde, só vim aqui uma vez. Lembro que havia uma casa com uma enorme árvore zelkova no jardim da frente, bem ao lado dela... Ah, lá está!
Asai seguiu o olhar de Miyako. Na próxima curva da estrada, viu uma zelkova alta; sua ponta e galhos tinham uma leve camada de brotos novos e verdes.
Quando dobraram a curva, a casa com a zelkova apareceu inteira. Seu muro baixo de pedra era coberto por uma cerca alta de bambu que se estendia por cerca de cento e vinte metros de largura. Ao longo da base da cerca havia uma cerca viva de azaléias e, acima, as cabeças de várias árvores perenes saíam de dentro do jardim. A árvore zelkova estava bem no canto. No final de um lance de degraus de pedra que desciam da casa havia um portão coberto. A placa de identificação no portão dizia “Kubo”. A placa de identificação, o portão, a cerca de bambu e a casa de dois andares parcialmente visível eram todos muito antigos. Era bastante típico das casas neste bairro.
Miyako parou logo depois da casa Kubo. A fachada do próximo prédio tinha apenas cerca de três ou quatro metros de largura; o segundo andar estava quase todo escondido por uma grande placa que dizia COSMÉTICOS TAKAHASHI. Era uma loja pequena, contudo os produtos expostos na vitrine eram embalados de forma colorida e todo o lugar emitia uma vibração alegre.
— É aqui. — Miyako anunciou, tirando seu casaco cinza-claro. Por baixo, seu terno era exatamente do mesmo tom.
Do outro lado da boutique, construída em uma ladeira, havia uma casa de estilo ocidental com sua própria garagem. Parecia novinha em folha. Havia um gramado na frente cercado por elegantes grades de ferro. No meio do gramado havia um tradicional jardim de pedras japonês. Olhando para a placa de identificação, Asai conseguiu ler o nome Hori.
Asai tirou o sobretudo também e seguiu Miyako para dentro da boutique. O interior era estreito e um pouco estranho para duas pessoas ficarem lado a lado.
Uma mulher de rosto redondo de trinta e sete ou trinta e oito anos, vestida com um jaleco branco, apareceu dos fundos da loja. De início, reagiu surpresa ao ver Miyako, no entanto logo transformou isso em um sorriso. Seus olhos eram grandes e seus lábios cheios, e sua pele estava maquiada para parecer o mais branca possível, como se estivesse modelando sua própria linha de cosméticos. A mulher era baixa, entretanto tinha uma figura cheia e bem torneada.
— Obrigado por tudo o que você fez pela minha irmã... E muito obrigado por vir ao funeral. Nós realmente apreciamos sua generosa doação.
Miyako de repente se lembrou de que estava acompanhada pelo marido da falecida.
— Este é o marido da minha irmã. Lamento que tenhamos demorado tanto, mas estamos aqui para agradecer por sua gentileza.
Miyako deu um ou dois passos para trás, e Asai deu um passo à frente.
— Eu me chamo Tsuneo Asai. — ele disse, segurando seu cartão de visita e fazendo uma profunda reverência. — Sinto muito mesmo por todos os problemas que minha esposa lhe causou. Realmente não há uma boa maneira de se desculpar. Deveria tê-la visitado antes para expressar minhas desculpas e meus agradecimentos por tudo o que fez por ela, porém sua morte foi tão repentina, e estive tão ocupada cuidando dos arranjos do funeral. Então não foi possível visitá-la até depois do serviço memorial do sétimo dia, então temo estar um pouco atrasado para oferecer meus agradecimentos.
— Sinto muito por sua perda. O memorial do sétimo dia já aconteceu? Tudo parece um sonho para mim... Não consigo imaginar como deve ser para você.
Após essa troca apropriada de cumprimentos, Asai colocou a cesta de frutas no balcão com tampo de vidro, junto com um envelope contendo três notas de 10.000 ienes.
A dona da boutique parecia nervosa.
— Por favor, não precisava fazer isso. — ela disse, empurrando o envelope de volta para Asai.
— Não, nós insistimos. É uma expressão do nosso pesar. Nós nos sentimos péssimos por todo o inconveniente que sofreu. Por favor, aceite este pequeno presente.
Miyako se juntou a Asai em uma reverência profunda, contudo a lojista não se comoveu.
— Não, sério. Apenas fiz o que qualquer um teria feito. Contudo não consegui nem salvá-la. Queria que as coisas tivessem sido diferentes. Foi tão trágico.
— Não, tudo bem, não é mais do que lhe devemos. Percebemos que você teve que fechar a loja naquele dia enquanto lidava com minha irmã e esperava o carro chegar.
— Não, não. Na verdade não sou tão ocupada aqui. Só tive que fechar as cortinas da frente por algumas horas. Não teve tanto efeito nos negócios.
De repente, pareceu que ela não estava sendo educada.
— Sinto muito por mantê-los de pé todo esse tempo. Minha loja é pequena, contudo vocês são mais do que bem-vindos para vir e sentar aqui.
A lojista os direcionou para os fundos da boutique. Miyako pegou o envelope de dinheiro do balcão e o levou junto.
Havia várias vitrines cheias de cosméticos, que funcionavam como uma espécie de divisória, bloqueando a visão dos fundos da parte principal da loja. Escondida atrás delas havia uma pequena mesa com quatro cadeiras. Estava escuro lá atrás com as vitrines bloqueando a luz da frente da loja, no entanto a lojista acendeu uma luz no teto.
Teria sido apropriado para Asai ir embora depois de trocar cumprimentos com a lojista, entretanto estava ansioso para ouvir mais detalhes de como Eiko tinha acabado naquela boutique, e sobre o momento em que deu seu último suspiro, então foi em frente e sentou-se ao lado de Miyako. Já havia ouvido a história toda de sua cunhada, mais ou menos, todavia agora queria ouvir um relato em primeira mão. Isso, e precisava prestar seus respeitos à mulher que ajudou sua esposa em seus momentos finais.
A lojista desapareceu por alguns minutos, talvez preparando um chá para seus convidados. Não havia sinal de nenhum outro membro da família por perto. Nem a boutique parecia ter funcionários além da proprietária; o negócio provavelmente era pequeno demais para poder pagar por qualquer equipe de vendas. Porém, graças à sua localização, estava oferecendo alguns itens de grife muito caros. Asai ponderou sobre, quando seu olhar foi atraído por um pôster anunciando uma famosa linha de cosméticos.
A proprietária, ainda em seu jaleco branco, voltou com três xícaras de chá preto em uma bandeja de prata.
— Obrigado. Não precisava ter se dado ao trabalho. — murmurou Miyako, levantando-se um pouco da cadeira para fazer uma reverência.
— Não, não é nenhum trabalho. Pelo contrário, não tenho muito que oferecê-los. — respondeu a lojista, colocando uma xícara de chá na frente de Asai. Então ela mostrou seu cartão de visita. No canto superior direito estavam os nomes de duas famosas empresas de cosméticos com as quais era evidente que tinha um contrato especial. A linha do meio dizia COSMÉTICOS TAKAHASHI, e à esquerda seu nome, Chiyoko Takahashi, seguido por seu endereço e número de telefone em letras pequenas. Não havia menção a outros membros da família.
A Sra. Takahashi leu atentamente o cartão de visita de Asai antes de colocá-lo na mesa à sua frente. Deve ter notado o título de ‘Segundo Chefe de Seção’ no Departamento de Alimentos Básicos do Ministério da Agricultura e Florestas, mas não disse nada, e seu rosto não demonstrou emoção alguma. Asai adicionou um pouco de açúcar ao chá e usou as costas da colher de chá para espremer a fatia de limão flutuante contra o fundo da xícara. Ele tomou um gole e começou a falar.
— Minha cunhada me contou um resumo do que houve aquele dia aqui, porém eu apreciaria se pudesse me contar mais sobre como minha esposa acabou na sua loja e o que você fez por ela.
— Claro. Não seria respeitoso com sua falecida esposa se não contasse a história toda ao seu marido.
Chiyoko Takahashi inclinou um pouco a cabeça para trás e começou. Asai notou sua boca. Seus lábios eram bastante proeminentes, contudo sua maquiagem era tão bem aplicada que era quase imperceptível; na verdade, até aumentavam sua atratividade.
— Era sete de março, uma sexta-feira, por volta das quatro da tarde. Eu estava aqui atrás quando sua esposa apareceu de repente na loja. Presumi que fosse uma cliente, então a cumprimentei e me aproximei... Ela estava parada na frente da vitrine de vidro, bem onde vocês estiveram antes, sem falar. Perguntei se havia algo que gostaria que a mostrasse, no entanto não houve resposta. Acredito que estivesse tentando controlar a dor do ataque cardíaco ao ponto em que sua boca apenas não se movia. Tinha vindo andando pela rua...
— Desculpe, mas de que direção ela veio?
A interrupção inesperada de Asai pareceu confundir a Sra. Takahashi por um momento, entretanto sua resposta veio em seguida.
— Veio da esquerda. — disse, apontando para a rua. Era a mesma direção de onde Asai e Miyako tinham vindo. Era uma subida, todavia não particularmente íngreme. Colinas íngremes sem dúvida não eram boas para pessoas com coração fraco, pensou Asai, porém essa ladeira não poderia ter sido a causa. Eiko estava subindo a rua quando passou mal.
— Entendo. Sinto muito por tê-la interrompido. — Asai acenou para encorajá-la a continuar.
— Enquanto sua esposa subia a colina, de repente começou a se sentir mal. No entanto, qualquer mulher se sentiria estranha desmaiando na rua; seria indigno acabar deitada no chão. Então acho que tentou desesperadamente controlar a dor até conseguir entrar em uma loja, e a minha foi a primeira que viu. Como é provável que tenha notado, a maioria dos prédios por aqui são casas de família muito boas. A minha é o único negócio. E suponho que o fato de ser uma boutique de cosméticos tornou um pouco mais fácil para sua esposa entrar.
Isso era verdade. Em uma crise, qualquer loja serviria, mas Asai tinha certeza de que uma que atendesse mulheres em específico seria mais confortável para Eiko.
— Notei que havia algo errado com sua esposa e a perguntei o que era. Me aproximei e ela levantou a bolsa como se estivesse tentando me fazer pegá-la. Percebi que queria que eu a abrisse e encontrasse sua identidade e o telefone de algum familiar. Quando a abri, me deparei com sua agenda de compromissos. Seu nome e endereço estavam escritos ali.
Esse era o caderno de haicai de Eiko. Desde que começou a fazer haicai, nunca saía de casa sem levá-lo na bolsa. Quando trouxeram seu corpo para casa, seu pai passou a bolsa para Asai e este viu o livreto dentro.
— Porém temo não ter percebido o que quis dizer em um primeiro momento. Eu estava muito preocupada. De repente, ela se agachou com as duas mãos pressionadas contra o peito. Me aproximei tentando apoiá-la por trás. Acho que estava meio em pânico.
Miyako estava com o lenço na mão e enxugava os olhos.
— Vi que o rosto da sua esposa estava mortalmente pálido, então fiz o meu melhor para sustentá-la e a levei aos fundos da boutique. Minha sala de estar fica por ali, é uma sala de tatame, então a levei para lá, contudo ela já tinha desmaiado e parecia estar em grande sofrimento. Como estava sozinha, não tinha ideia do que fazer. E naquele momento, uma jovem universitária que mora no bairro apareceu para comprar maquiagem. O Dr. Ohama tem uma clínica a cerca de cinco casas, à direita. Pedi para que se apressasse e buscasse a ajuda dele.
O resto da história foi tal qual Asai ouviu de Miyako. O Dr. Ohama correu direto para a loja, entretanto quando chegou lá Eiko já tinha parado de respirar. Procurando por algo que identificasse a mulher que havia tropeçado em sua loja, Chiyoko Takahashi abriu a bolsa de Eiko e encontrou sua agenda de compromissos. O nome e endereço estavam escritos lá, porém infelizmente nenhum número de telefone. Nem havia nenhum registro na lista telefônica sob o nome de ‘Eiko Asai’; pois o telefone, é claro, estaria cadastrado sob o nome do marido.
Uma maneira de encontrar o número seria passar por todos os muitos Asais na lista telefônica, um por um, verificando os endereços até que coincidisse com os de sua agenda, contudo em sua angústia, não ocorreu à dona da loja de cosméticos tentar.
Olhando o diário, por fim encontrou o nome e o número de outra pessoa e ligou. Acabou sendo o professor de haiku de Eiko, que morava em Horinouchi, no bairro Suginami. O professor, por sua vez, ligou para a casa de Eiko, onde Miyako atendeu. Foi por isso que demorou tanto para Asai receber a notícia.
Cerca de 40 minutos mais tarde, a história da Sra. Takahashi terminou de ser contada e, no final, Asai sentiu que tinha uma imagem mais clara das circunstâncias da morte de Eiko.
— Quanto mais ouço, mais percebo o quanto lhe devemos. — disse Asai, curvando-se mais uma vez. — Infelizmente, eu estava em uma viagem de negócios em Kobe quando aconteceu.
— Sim, é muito lamentável. Deve ter sido um choque terrível quando ouviu a notícia.
— Bem, sim, foi.
— Sim, além de ter sido tão repentino. Posso perguntar, sua esposa estava com problemas de saúde antes de acontecer?
— Não tenho certeza se poderia dizer que estava doente. Já tinha tido sintomas antes, contudo eram muito leves. Na verdade, Eiko não teve problemas no dia a dia. Quero dizer, se virava muito bem.
— Isso é realmente uma pena.
Nesse ponto, Miyako mais uma vez ofereceu o envelope com o dinheiro de agradecimento. A pequena mostra de cortesia entre a Sra. Takahashi e Asai se repetiu até que no fim a lojista aceitou o presente.
— Eu aprecio muito. — disse ela, fazendo uma profunda reverência.
Durante todo esse tempo, nenhum cliente entrou na boutique, nem parecia haver mais ninguém nos aposentos. Quando disse que estava sozinha no dia em que Eiko correu para sua loja, e não sabia o que fazer, tendo que eventualmente enviar uma jovem estudante para buscar o médico, Asai acreditou. Ele imaginou que a lojista sempre estava lá sozinha. Miyako também mencionou que quando havia chegado com seu pai de carro para pegar o corpo de Eiko, não havia sinal de mais ninguém por perto.
Asai pegou seu casaco e fez menção de ir embora. A Sra. Takahashi educadamente o parou e o ajudou a vesti-lo. Ele sentiu um cheiro de perfume caro quando a mulher se aproximou; ao que parece outra ferramenta do ofício.
— As casas por aqui são impressionantes. — comentou Asai, desviando o olhar dos olhos escuros e redondos da Sra. Takahashi.
— Sim, minha boutique é o único lugar pequeno por aqui. — Chiyoko Takahashi sorriu pela primeira vez desde que se conheceram. Sob a maquiagem pesada e esbranquiçada, Asai podia ver uma teia inteira de pés de galinha.
— Notei que você vende marcas muito exclusivas. Acho que elas são o tipo de coisa popular entre as pessoas por aqui. — comentou Miyako.
— Sim, é isso mesmo. Ou pelo menos esse era o plano.
Gentilezas foram trocadas uma última vez, e Asai e Miyako foram embora.
Asai começou a subir a colina. Sua cunhada o chamou.
— Ei, Tsuneo-san, esse é o caminho errado!
— Eu sei, mas pensei em dar uma olhada mais de perto nesta rua. Dar uma olhada em todas as casas lindas.
Asai sentiu que seria reconfortante para sua alma passear por esta parte tranquila da cidade e apreciar a vista de todas as casas elegantes. Ele persuadiu Miyako a acompanhá-lo em uma curta caminhada.
Ao lado da boutique de Chiyoko Takahashi ficava a casa com o nome Hori marcado no portão. Além dela, uma casa tradicional de estilo japonês que pertencia a Ishida, com um pinheiro no jardim da frente. Do outro lado da rua, as pontas de uma cerca viva de bambu eram visíveis acima de um muro de concreto. A placa de identificação no portão dizia Kobayashi.
Enquanto caminhava, Asai levantou o olhar para o topo da colina. Bem acima, podia ver uma placa de neon. Dizia Hotel Tachibana.
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