Volume 01 — Capítulo 04: A Fraqueza dos Demônios
— Mana, tem certeza de que não precisamos de mais fertilizante? — o tom apreensivo de Dan enquanto pegava a última caixa de plástico e a colocava na caçamba da carroça deles atingiu o peito de Doris.
Isso foi bem na hora em que D estava passando pelos portões do castelo dos vampiros.
A dupla tinha ido a Ransylva para fazer as compras do mês. Entretanto, os resultados foram algo lamentável. O velho Whatley, proprietário de uma loja local, sempre foi gentil o suficiente para trazer coisas do depósito que não tinha exposto, mas hoje os dera uma recusa fria como nunca havia feito antes. Enquanto Doris nomeava as necessidades, o velho respondeu com aparente pesar que elas estavam esgotadas ou em falta. E ainda assim, atrás do balcão e no canto, Doris viu que tinha pilhas das coisas listadas. Porém quando questionado, ele se atrapalhou ao dizer que a mercadoria já estava reservada.
Doris entendeu rápido o suficiente. Só havia uma pessoa tão medíocre para lhe causar tamanha tristeza.
Mesmo assim, não tinha tempo a perder discutindo com Whatley, então reprimiu sua raiva, passou pela casa de um conhecido e, de alguma forma, conseguiu o que precisava por agora. No momento, cada minuto do nascer ao pôr do sol era tão precioso quanto uma joia para Doris. À noite, sua terrível batalha de vida ou morte com o demônio a aguardava. Não importava o que acontecesse, tinha que chegar em casa antes do anoitecer, essa era a mensagem que D havia incutido nela antes de partir. Bem, Doris já sabia, contudo... Assim que carregou o último pacote de carne seca na carroça, mordeu seu lábio. A expressão estranhamente desamparada que Dan tinha lá na carroça se transformou em um sorriso no segundo em que seu rosto se virou para a irmã. O garoto estava fazendo tudo o que podia para impedi-lo de se motivo de preocupação para a irmã. Porque entendeu suas intenções, o coração de Doris estava cheio de uma preocupação, uma tristeza e uma raiva que não seriam controladas. Uma de suas mãos se estendeu e, sem que se desse conta, apertou o cabo do chicote que tinha enfiado no cinto. Só havia um lugar para direcionar sua raiva.
— Droga, esqueci de passar na casa do Doutor Ferringo. — ela disse com agitação fingida. — Espere aqui. Não seria nada bom se nossas mercadorias fossem roubadas, então não saia da carroça.
— Mana...
A palavra de seu irmão pareceu grudar nela, como se sentisse algo, no entanto Doris respondeu.
— Ei, um garoto do seu tamanho deveria ter vergonha de fazer uma cara dessas. D riria se pudesse vê-lo com essa cara desanimada. Pare de se preocupar. Enquanto eu estiver por perto, tudo ficará bem. Não é assim que sempre foi? — falando com gentileza, mas com firmeza, e não lhe dando chance de discordar, Doris se apressou e saiu pela rua, pensando. Há essa hora, imagino que aqueles canalhas estejam na Lagoa Negra ou no Hotel Pandora. Vou ensiná-los uma coisa ou duas coisas!
Sua suposição provou estar correta. No segundo em que abriu as portas de batente do bar, Greco e sua gangue sorriram e se levantaram da mesa nos fundos. Contando o número deles em sete, Doris estreitou os olhos de repente quando viu o que Greco estava vestindo.
Seu corpo inteiro estava brilhando. Do topo da cabeça até as pontas dos pés, Greco estava coberto por roupas metálicas... Na verdade, um tipo de arma chamada traje de combate. Doris nunca tinha visto um antes, no entanto seu espanto logo desapareceu, e com uma expressão de desprezo que dizia, parece que aquele idiota frívolo pulou em uma nova onda da moda, ela o atacou.
— Você estava tão irritado com tudo o que aconteceu esta manhã que foi e pressionou o Velho Whatley para que não nos vendesse nada, não é? E ainda se diz um homem? Você é o pior dos lixos!
— Do que diabos está falando? — um sorriso irônico foi delineado no rosto de Greco. — Não preciso tirar nada de ninguém que está prestes a virar o brinquedinho de algum vampiro. Deveria agradecer às suas estrelas da sorte por não termos deixado essa pequena informação vazar. É melhor colocar na cabeça que vai ser a mesma coisa no mês que vem e no mês seguinte. Parece que conseguiu juntar alguma coisa hoje, mas por quanto tempo essa quantia lamentável manterá seus pomares e suas vacas alimentadas? Talvez duas semanas, se tiver sorte. Claro, supondo que ainda esteja andando por aí e projetando uma sombra por tanto tempo. Vai ficar tudo bem já que em breve não precisará mais comer nada para sobreviver, porém o que será do seu pobre irmãozinho?
Antes que seus comentários sarcásticos terminassem, o chicote saiu da mão de Doris. Ele se enrolou na parte do capacete de seu traje de combate e ela canalizou seu poder para derrubá-lo. Contudo sua imprudência nasceu de sua ignorância. Greco... Ou melhor, seu traje de combate, não se moveu um centímetro. Segurando a ponta do chicote com a mão direita e com um pequeno puxão, o chicote voou para suas mãos.
— Quantas vezes achou que eu ia cair nessa, vadia?
Por mais chocada que estivesse, Doris era de fato filha de um Caçador, e pulou para trás quase dois metros. Enquanto saltava, olhos que brilhavam vulgarmente com a luz do ódio, luxúria e superioridade a seguiram.
— Não se esqueça de que é meu pai que comanda o show na cidade. Não há nada que nos impeça de garantir que você e seu irmãozinho idiota morram de fome.
Doris estava um pouco abalada, e isso transparecia em seu rosto, sabia a verdade do que tinha acabado de ouvir.
Um comitê geralmente governava as operações da aldeia, no entanto a autoridade máxima na cidade era o prefeito. Sob as duras condições das terras da Fronteira, procedimentos operacionais demorados e pouco entusiasmados, como parlamentos e governo da maioria, trariam a morte aos moradores em pouco tempo. Monstros, mutantes, bandidos... Os implacáveis olhos famintos de forças externas estavam focados em Ransylva. E, é claro, as operações da aldeia incluíam a compra e venda de mercadorias. Seria moleza inventar algum motivo para suspender uma loja de fazer negócios. Quando se tratava da vida ou morte de seu negócio, o Velho Whatley não tinha escolha a não ser se curvar à coação. Para Doris, uma viagem difícil de dois dias para fazer compras em Pedros, a vila vizinha mais próxima, estava fora de questão nas condições atuais. De qualquer forma, era óbvio que Greco e seus comparsas tentariam impedi-la de tentá-lo.
— Quanta coragem dizendo uma coisa desprezível dessas. Não me importa se você é filho do prefeito... — a voz de Doris tremeu de raiva.
Ignorando-a, Greco disse.
— Mas se fosse minha esposa, tudo seria diferente. Nós temos tudo planejado para que, quando meu pai se aposentar, as pessoas com influência nesta cidade garantam que eu seja o próximo prefeito. Então, o que me diz? Não vai reconsiderar? Em vez de se esforçar muito naquela fazenda decadente, poderia ter todas as roupas chiques que pudesse usar e tudo o que pudesse comer dos acompanhamentos mais elegantes. Dan também adoraria. E poderíamos expulsar aquele vagabundo assustador porque eu a protegeria do vampiro. Se fizéssemos uma oferta e colocássemos o dinheiro lá, ficaria surpresa com quantos Caçadores apareceriam. O que diz?
Em vez de uma resposta, Doris se aproximou. Bem, vejam só... Não importa o quão durona tente agir, ainda é uma mulher, afinal, Greco pensou por uma fração de segundo antes que uma massa de líquido respingasse contra a viseira fumê do capacete. Doris cuspiu nele.
— S-Sua vadia louca! Tento te tratar bem, e me faz essa merda! — Greco não estava acostumado a usar o traje, e sua mão direita tilintou rudemente enquanto limpava sua máscara facial. Porém então agarrou Doris com uma velocidade incrível. Segurou seu torso antes que a garota tivesse a chance de pular para longe e a puxou para si. Comprado poucas horas antes de um comerciante errante, o traje de combate era de segunda mão e de qualidade inferior, contudo sua construção... Uma armadura de aço ultrarresistente construída sobre uma base de pseudo-pele orgânica reforçada sobre um sistema nervoso eletrônico, aumentava a velocidade do usuário em três vezes e elevava dez vezes sua força normal. Agora que Greco tinha pego Doris, não havia como escapar.
— O que está fazendo? Me solte. — ela gritou, no entanto só conseguiu machucar sua própria mão quando lhe deu um tapa.
Greco não teve problemas em conter as duas mãos de Doris com uma das suas, e a ergueu a um pé do chão. O capacete se dividiu ao meio com um raspar metálico. O rosto que a observava era de uma luxúria indisfarçada e diabólica. Um fio de baba se estendia do canto de seus lábios, que continha um pequeno sorriso. Doris encarou-o indignada, mas ele disse.
— Você está sempre se fazendo de superior. Bem, aqui mesmo, agora mesmo, vou torná-la minha. Ei, idiota, não faça nada engraçado e fique longe! — com essa última observação, rugiu para o barman de meia-idade que havia saído do balcão para tentar acabar com as coisas, fazendo o barman retornar ao seu posto. Afinal, estava enfrentando o filho do prefeito. Com os olhos injetados de luxúria, os lábios imundos de Greco se aproximaram da jovem beldade imobilizada. Doris virou o rosto.
— Me solta! Vou chamar o xerife!
— Isso não vai adiantar muito. — riu Greco. — Ora, se for mesmo necessário, vamos garantir que não o maldito se meta. Ei, o bar está fechado agora! Alguém fique de guarda para que ninguém entre.
— Pode deixar. — um dos lacaios de Greco foi em direção à porta, entretanto parou abruptamente. De repente, havia uma parede preta na sua frente, bloqueando seu caminho.
— O que diabos você...
Seu grito foi interrompido quase em seguida e, uma fração de segundo depois, o lacaio voou através de mesas e cadeiras, colidiu com dois de seus companheiros e acertou a parede de cabeça. Não que tenha sido jogado contra ela. A parede preta apenas deu ao homem um leve empurrão para trás. Todavia sua força deve ter sido sobre-humana: tanto o lacaio que tinha voado quanto os outros dois que atingiu estavam todos caídos no chão, e parte do gesso tinha sido arrancado da parede.
— Seu desgraçado! O que diabos pensa que está fazendo? — enquanto os bandidos empalideciam e pegavam as armas na cintura, a parede negra olhou para eles e deu de ombros casualmente.
Com mais de dois metros e meio de altura, o homem era um gigante careca. Braços, nodosos como as raízes de uma árvore, projetavam-se de seu colete de couro. Seu corpo devia pesar cento e cinquenta quilos. A julgar pelo facão enorme e bem usado pendurado em seu cinto, os bandidos perceberam que seu inimigo tinha mais do que apenas tamanho do seu lado, e suas expressões ficaram mais prudentes.
— Por favor, nos perdoe. Meu amigo aqui não está familiarizado com o conceito de contenção.
Contorcendo-se no abraço de Greco, Doris esqueceu suas lutas por um momento e se virou para os recém-chegados apenas para ter seus olhos arregalados de surpresa. A voz era linda, mas o próprio homem brilhava positivamente.
Sua idade devia ser em torno de vinte anos. Tinha lindos cabelos pretos que caíam até os ombros, e profundos olhos castanhos que pareciam prontos para engolir o mundo, deixando todos que os contemplavam se sentindo gloriosamente bêbados. O jovem era um Apolo asiático. E, junto com o gigante e dois outros companheiros, sentou-se à mesa.
As únicas outras pessoas na Lagoa Negra além de Greco e sua gangue, os recém-chegados começaram a se divertir com um jogo de cartas. Se o brilho penetrante em seus olhos era alguma indicação, eles tinham que ser Caçadores viajantes com alguma confiança.
— O que diabos vocês, idiotas, pensam que são? — Greco perguntou, ainda segurando Doris.
— Eu sou Rei-Ginsei, a Estrela de Prata Serena. Meu amigo aqui é Golem, o Intorturável. Nós somos Caçadores de Behemoths.
— O inferno que são. — Greco berrou, enquanto olhava para os quatro. — Está me dizendo que caça aqueles grandes e velhos behemoths com tão poucas pessoas? Um bebê behemoth não pode nem ser morto sem dez ou vinte caras. — ele riu com desdém. — Claro, você tem esse grande bastardo, porém isso ainda te deixa com um menino maricas, um cabeça de alfinete e um corcunda de merda. Então, por favor, me explique... Como um bando de rejeitados assim caçam, afinal?
— Nós vamos mostrá-lo, aqui e agora. — Rei-Ginsei disse com seu sorriso de deus-sol. — Contudo antes de o fazermos, solte a jovem, gentilmente. Se ela fosse feia, poderia ser outra questão, no entanto tratar uma mulher bonita dessa maneira é uma grave violação de etiqueta.
— Então por que vocês não me fazem parar, seus grandes e terríveis Caçadores?
Os lábios vermelhos que emolduravam seus dentes brancos perolados se curvaram com tristeza.
— Então é assim que vai ser? Muito bem...
— Ok, vamos lá então!
Greco estava acostumado a entrar em brigas, todavia a razão pela qual esqueceu o poder de seu traje de combate e jogou Doris para o lado com todas as suas forças pode ter sido porque tinha alguma ideia de como a batalha que se aproximava terminaria.
Incapaz de se preparar para sua queda, Doris bateu a cabeça na borda de uma mesa. Quando recuperou a consciência, estava segura em um par de braços poderosos, e as coisas já estavam resolvidas.
— Ai, isso dói. — ela disse, esfregando a testa.
Rei-Ginsei lhe devolveu um sorriso gentil e a levantou do chão.
— Nós lidamos com aqueles vagabundos. Não estou bem certo sobre a situação aqui, mas acho que sair antes que o xerife seja chamado pode evitar complicações.
— Hum, sim, tem razão. — devido à sua dor de cabeça latejante, sua resposta foi confusa, porém Doris notou o rangido agudo de madeira contra madeira atrás dela e se virou a tempo de ficar tomada pela surpresa. Cada um dos bandidos de Greco estava deitado no chão. Apesar da dor de cabeça, Doris seguia atenta o suficiente para notar algo estranho sobre eles com um simples olhar.
Os braços e pernas dos dois esparramados mais próximos dela no chão estavam dobrados para trás contra as articulações do cotovelo e do joelho e estavam torcidos em horríveis objetos de arte. Talvez os bandidos tenham sido vítimas da força monstruosa de Golem, contudo o que chamou a atenção de Doris foram os restos de uma espada longa e um facão próximos dos homens caídos. Não tinha certeza sobre o facão, no entanto a espada longa era sem dúvida um sabre de alta frequência com um gerador de ondas de frequência sônica embutido, capaz de cortar placas de ferro. Ambas as armas foram destruídas até o punho, como se tivessem tentado cortar um bloco de aço.
Logo atrás de uma das mesas redondas, o braço direito de Greco, O’Reilly, se contorcia. Ele era conhecido por sua habilidade com um revólver; uma vez, Doris o viu derrubar uma abelha no ar a cinquenta metros com seu saque rápido. Quando o viu pela última vez, já estava levando sua mão para a arma. Quando um dos quatro veio até em sua direção, o cano de sua arma deveria ter cuspido chamas em menos de três décimos de segundo. Entretanto, ali estava O’Reilly, esparramado de bruços no chão com a mão ainda presa ao punho da pistola. Todavia o que de fato fez Doris estremecer foi a localização do ferimento que o derrubou. A parte de trás de sua cabeça estava aberta. Um dos quatro... Bem, talvez não Golem, um dos outros três alcançou suas costas desferiu o golpe sem lhe dar os três décimos de segundo de que precisava para sacar.
Diagonalmente em frente à O’Reilly, outra pessoa levantou a cabeça. Doris sentiu como se todo o sangue tivesse sido drenado de seu corpo. Os três primeiros bandidos que foram jogados contra a parede seguiam estando inconscientes, e podiam ser considerados sortudos por isso. O rosto do homem restante parecia ter sido picado por abelhas assassinas cruéis, sua pele estava inchada com pústulas vermelho-escuras que pingavam um fluxo constante no chão. Embora Doris não tenha percebido a princípio, naquele exato momento um inseto preto rastejando pelo chão parou aos seus pés, correu um pouco mais perto e então passou direto por ela como se alguém o estivesse chamando de volta. Era uma pequena aranha. Foi das sandálias de couro do corcunda até sua perna, então subiu mais alto em suas costas até uma enorme corcunda, coberta por um colete de couro. Tanto o colete quanto a corcunda se dividiram bem no meio, e a aranha desapareceu na fissura. A fissura fechou em seguida.
— Surpresa? Receio que possa ser um choque muito grande para uma linda jovem como você...
Doris ouviu a voz de Rei-Ginsei como se estivesse distante, como o toque de um sino, pois sua alma havia sido roubada quando viu o resultado mais assustador de toda a batalha sobrenatural: viu Greco, o único ileso, ainda sentado em sua cadeira com as mãos presas nos braços e a expressão de um homem morto em seu rosto. O rangido de madeira contra madeira que ouviu foi o som de seu corpo trêmulo sacudindo as pernas da cadeira contra o chão. O que quer que tenha testemunhado da segurança de seu traje de combate, fez seus olhos se arregalarem, e eles não refletiam nada além de pálido terror.
— O que vocês fizeram? — Doris perguntou com uma voz firme quando enfim olhou para Rei-Ginsei e escorregou de seus braços.
— Nada. — Rei-Ginsei fez uma expressão mortificada. — Nós apenas terminamos o que eles começaram, no nosso próprio estilo inimitável, é claro.
— Obrigado. — Doris disse agradecida. — Eu realmente aprecio sua ajuda. Se forem ficar na cidade por um tempo, gostaria de fazer algo para agradecê-los depois.
— Não se incomode. Não há nada neste mundo mais profano do que o feio fazendo o belo se submeter à força. Estes homens apenas tiveram um gostinho da ira do céu.
— Está me lisonjeando, mas teria feito o mesmo por outra garota se estivesse sendo tratada da mesma forma?
— Claro que iria em seu auxílio. Desde que fosse bonita.
Doris desviou os olhos do rosto calmamente sorridente do lindo homem.
— Bem, obrigado novamente. Agora, se me der licença.
— Sim, deixe-nos cuidar dessa bagunça. Estamos bem acostumados a isso. — enquanto Rei-Ginsei assentia, algo negro jorrou em seu olhar. — Tenho certeza de que nos encontraremos de novo.
Poucos minutos depois, Doris fez a carroça correr de volta para a fazenda.
— Aconteceu alguma coisa lá, mana?
Sua expressão distante não mudou com a pergunta preocupada de Dan, que estava no banco do carona. As ansiedades que corriam soltas em sua mente não lhe permitiam sorrir.
Só podia esperar que Greco tornasse as coisas ainda mais difíceis para ela agora, e além do mais, não tinha garantia de que D voltaria esta noite. Sabia que deveria ter parado D quando este disse que iria para o castelo do senhor durante o dia para aproveitar a habilidade dos dampiros de poder se mover à luz do dia. Se D não voltasse, ficariam desamparados e sozinhos antes do próximo ataque do Conde. Doris não tinha provas de que o Conde viria esta noite, porém tinha certeza que ocorreria. Sua cabeça balançou inconscientemente. Não, isso significaria que D estava morto.
Eu sei que ele vai voltar, pensou consigo mesma.
Sua mão direita roçou a nuca. Momentos antes de partir, D colocou o que disse ser um feitiço nas marcas de presas ali. Para sua decepção, o feitiço era bem simples, consistindo apenas em uma leve pressão da palma da mão esquerda na ferida; ele sequer a explicou qual efeito deveria ter, contudo era tudo em que Doris podia confiar agora.
Outro rosto se formou em sua mente. Aquele jovem arrojado no bar também poderia ser considerado seu salvador de certa forma, no entanto Doris sentiu uma sombra sinistra cair sobre seu coração. Quando este a levantou do chão e pôde ver seu belo rosto de perto, ela na verdade desmaiou. Entretanto seu instinto virgem captou o cheiro doce e enjoativo de fruta podre que pairava em seu lindo rosto.
Não, talvez não foi seu instinto que captou, e sim o trabalho de algo firmemente gravado em uma parte mais profunda sua: o rosto de um jovem mais bonito e mais nobre que Rei-Ginsei. Doris teve um pressentimento de que o belo recém-chegado se mostraria um perigo maior para ela do que Greco. Essa era outra de suas preocupações.
Volte logo. Não me importa se não conseguir derrotar o Conde, apenas volte para mim.
Que esses pensamentos não tinham nada a ver com sua segurança era algo que a jovem de dezessete anos ainda não havia notado.
Nos últimos minutos, a água morna, na altura da cintura, estava ficando mais quente, e a névoa que lambia seu caminho pelas paredes de pedra havia se tornado mais densa. Ele estava caminhando há trinta minutos. A queda do grande salão devia ser de cerca de vinte metros. Um vasto aqueduto subterrâneo cheio de água aguardava D. Como a água só chegava até seu peito, não importava muito que tivesse caído de pé primeiro, o que salvou D de um impacto brutal foi sua habilidade desumana e a indiscutível anatomia sobre-humana que todos os dampiros possuíam.
A anatomia dos vampiros, principalmente seus ossos, músculos e nervos, permitia que eles absorvessem o impacto e se recuperassem de danos centenas de vezes melhor do que os humanos. Embora, é claro, variasse de indivíduo para indivíduo, os dampiros herdavam pelo menos cinquenta por cento dessas habilidades. De uma altura de 20 metros, um dampiro tinha boas chances de atingir solo firme e sobreviver. Seria quase impossível evitar quebrar todos os ossos do corpo e romper alguns órgãos internos, porém mesmo assim alguns dos dampiros mais rápidos seriam capazes de se curar por completo em cerca de setenta e duas horas.
De qualquer forma, D não havia se machucado nem um pouco, e estava com água até o peito na água negra, observando os arredores. Talvez fosse uma caverna subterrânea preexistente que havia sido reforçada por uma construção posterior. Lugares aqui e ali nas paredes de pedra preta de ambos os lados mostravam sinais de serem reparados com concreto armado. A água estava morna, e uma névoa branca e pálida emprestava ao ar uma umidade opressiva. O aqueduto em si tinha cerca de 5 metros de largura. Parecia ser uma formação natural, e um odor peculiar a fontes minerais havia alcançado as narinas de D enquanto caía no poço. Ao seu redor se estendia um mundo de absoluta escuridão. Apenas sua visão de dampiro lhe permitia distinguir o quão largo era o aqueduto. Ele virou o olhar para cima, contudo, sem surpresa, não conseguiu discernir o alçapão a 20 metros acima. Como as portas já tinham sido recolocadas há muito tempo, era natural que não as visse. E, claro, não havia meios de saída para serem vistos nas paredes de pedra que ostentavam uma massa incalculável.
— O que fazer, o que fazer... — D murmurou esse comentário raro em uma voz profunda, entretanto começou a caminhar propositalmente na direção de onde a água ao seu redor fluía, embora o fluxo fosse silencioso e tão suave a ponto de ser imperceptível. Duro e uniforme, o fundo do aqueduto parecia ser obra de alguma força externa. Isso não queria dizer que tivesse apenas que andar o bastante e longe o suficiente para que uma saída se apresentasse. E não tinha conhecimento das três irmãs que o Conde havia mencionado em tom ameaçador na câmara lá em cima.
Algo estava o aguardando.
D estava ciente, e sabia que sua ofensiva havia causado um ferimento no Conde. Não havia como o lorde vampiro deixar um oponente tão temível apenas cair no canal subterrâneo e ficar sentado sem fazer nada. D tinha certeza de que algum tipo de ataque estava por vir. E mesmo assim, enquanto caminhava, não havia hesitação nas pernas que o carregavam pelo fundo firme do aqueduto, e nenhum indício de tensão ou inquietação no rosto brilhante e bonito que parecia fazer a escuridão recuar. E então parou.
Cerca de 8 metros à frente, o aqueduto se alargou e várias pedras de formas assustadoras se projetavam da superfície da água. Só ali a névoa era estranhamente espessa... Ou melhor, pairava tão densa que parecia subir das próprias águas, torcendo as pedras em formas muito mais ultrajantes e perturbadoras, selando o canal. O ar tinha um fedor fétido de decomposição. Os olhos de D viram uma película de espuma oleosa cobrindo a água e coisas brancas escondidas nos recessos das pedras. Ossos branqueados. Nas profundezas da névoa, houve um forte respingo, como um peixe sacudindo o rabo para fora da água.
Havia alguma coisa aqui. Seu covil ficava além das pedras sobrenaturais.
Ainda assim, D não mostrou nenhum sinal de voltar atrás e continuou caminhando com calma na névoa no centro das pedras. Uma vez lá dentro, o espaço entre as pedras parecia uma espécie de piscina ou viveiro de peixes. As pedras formavam fileiras de cada lado que cercavam por completo o curso d’água. A água estava parada ali, mais negra do que nunca, e a névoa branca pairava selvagem ao redor. Parecia que a fonte das fontes minerais não estava muito longe. Quanto mais avançava, maior o número de pedras sobrenaturais e, à medida que o número de ossos se multiplicava, o fedor ficava cada vez mais insuportável. A maioria dos ossos era de gado e outros animais, contudo restos humanos também eram evidentes. Havia um esqueleto que, a julgar pela aljava em suas costas, parecia ser um caçador, um crânio de mulher descansando nos restos esfarrapados de um vestido longo e os ossos diminutos de uma criança. Muitos deles não tiveram tempo de serem desnudados; carne vermelha escura e entranhas pendiam de seus ossos, cheias de larvas. Nessa cena vil e perturbadora, uma cena que faria uma pessoa comum enlouquecer ou parar, paralisada de medo, D notou que as espinhas e costelas de todos os esqueletos austeros tinham sido pulverizadas. Isso não era resultado de serem roídos por presas e mandíbulas tenazes. Tinham sido esmagados. Como se algo os tivesse apertado com força e os torcido de maneiras que nunca deveriam ter sido.
Mais uma vez, D parou.
Houve outro respingo, dessa vez muito mais perto. O zumbido de uma lâmina saindo da bainha subiu das costas de D. Ao mesmo tempo, ondulações se formaram na superfície alguns metros à sua frente, e uma massa branca emergiu na superfície. E logo depois, outra surgiu na direita. Depois uma na esquerda. Um branco sobrenatural na escuridão... Eram as cabeças de mulheres carnais e atraentes.
Talvez D tivesse perdido a coragem, porque ficou parado em vez de segurar sua espada pronta. As mulheres o encararam atentamente. Seus traços faciais eram distintos, mas todas eram igualmente bonitas, e os lábios vermelhos das três mulheres se contorceram em sorrisos largos. Bem atrás delas, houve outro respingo forte. Talvez essas três nadassem para cá para escapar do que quer que as estivesse perseguindo? Se fosse esse o caso, a maneira como mantiveram tudo, exceto suas cabeças, submerso após encontrar D era incomum. E os sorrisos que exibiam eram tão malignos, tão atraentes. Ele as observou e as mulheres o observaram por alguns segundos. Com o som de uma torrente de gotas, as três mulheres se levantaram em uníssono. Suas cabeças chegaram à altura de D... E então acima da dele, muito acima.
Quem no mundo humano poderia imaginar uma visão tão incrível? Três cabeças desencarnadas, porém lindas, presenteando-o com sorrisos encantadores de uma altura de três metros. Essas mulheres tinham que ser as três irmãs que o Conde havia mencionado.
Nesse ponto, D disse em um suave tom.
— Ouvi rumores a seu respeito. Então você é a Medusa de Midwich?
— Oh, você nos conhece, não é? — a cabeça no meio, que seria a irmã mais velha, tirou o sorriso do rosto. Sua voz era como o repique de um sino, contudo também pingava veneno. No entanto, não foi o fato de que o jovem arrojado diante delas parecia reconhecê-las pelo que de fato eram que deu à sua voz um tom de surpresa, e sim porque não havia um pingo de medo em suas palavras, até onde conseguia detectar.
As Medusas de Midwich. Essas três mulheres, ou essas três criaturas, eram bestas sobrenaturais de maldade inigualável que se alimentavam da luxúria de homens e mulheres jovens. Elas devoraram centenas de aldeões em uma parte da Fronteira conhecida como Midwich. Anos atrás, surgiram rumores de que haviam sido destruídas pelas orações de um eminente monge virtuoso que passava pela região, mas, sem o conhecimento de todos, as irmãs escaparam. Após um encontro casual com o Conde Lee, concordaram em se estabelecer muito abaixo de seu castelo com a condição de receberem três vacas por dia. Ao contrário dos monstros falsos que a Nobreza criou, nada poderia ser mais difícil de destruir do que um verdadeiro demônio como esse. As Medusas sobreviveram dezenas de milhares de anos e até sobreviveram à sua própria lenda. Como a hidra do mito antigo, as três cabeças das Medusas, que pareciam separadas, estavam de fato unidas a alguns metros abaixo em um enorme pilar de um torso revestido com escamas cinza-prateadas que permaneciam afundadas na água. Os sons de respingos em suas costas vinham do final do tronco, uma cauda que se debatia de alegria ao encontrar uma presa.
Entretanto D só conseguia ver as cabeças das mulheres. A razão pela qual sabia o que na verdade eram foi porque havia reconhecido as cabeças de três belas mulheres como objetos de um dos muitos rumores bizarros na Fronteira. Todavia a verdadeira questão era... Por que se fundiram na escuridão abaixo do pescoço?
— É um belo espécime, irmãs. — os sussurros da cabeça da direita soaram bastante impressionados, e lambeu os lábios. Sua língua vermelha de chama era fina, e a ponta era bifurcada. — Enfim temos um homem digno do nosso prazer. E não apenas um rosto bonito, veja como é musculoso também.
— Irmãs, vocês não podem tê-lo primeiro. — declarou a terceira cabeça, a da esquerda. — Há apenas cinco dias, vocês duas se alimentaram do caçador que entrou aqui enquanto eu dormia. Desta vez, serei a primeira. Primeira a levá-lo às alturas do arrebatamento, e primeira a provar seu sangue quando atingir esse pico.
— Que coragem! Nós somos suas irmãs mais velhas. — a cabeça da direita, e ao que parecia a segunda em comando, berrou.
— Parem com suas brigas. — a cabeça do meio as repreendeu, virando-se para a cabeça da esquerda. — Vocês podem ser as primeiras a beber do seu sangue. Porém, nós três o daremos prazer juntas.
— Sim.
— Eu posso aceitar isso.
Sem mais o que dizer, as três cabeças concordaram. Pequenas línguas de fogo entrando e saindo e as mulheres acariciavam cada centímetro de D com olhos apaixonados.
— Contudo fique em guarda... — disse a irmã mais velha. — Este homem não tem medo de nós.
— Bobagem! Alguém poderia saber o que somos e não tremer? Quando nos irritamos com nossas parcas refeições e mostramos nossas presas, o próprio Conde não bateu em retirada apressada, para nunca mais retornar ao nosso reino? — perguntou a segunda irmã.
— Mesmo supondo que não tenha medo, o que poderia fazer? Homem, você consegue se mover?
D permaneceu em silêncio. Na verdade, não conseguia se mover. Desde o primeiro momento em que pôs os olhos nas cabeças das mulheres, todo o seu corpo foi agarrado por inúmeras mãos.
— Consegue compreender? — continuou a segunda irmã. — É o nosso cabelo em ação.
Exatamente. A razão pela qual os pescoços e torsos das Medusas de Midwich se fundiram com a escuridão foi porque tudo abaixo de suas mandíbulas estava escondido por cabelos pretos que caíam em uma cascata de dezenas de milhares de fios, encobrindo o resto por completo. No entanto, este não era um cabelo comum. Uma vez na superfície da água, os fios se espalhavam como tentáculos, flutuavam e, quando sentiam o movimento de algo no covil, de acordo com a vontade das três irmãs, atraíam a presa para o centro. Então, chegado o momento apropriado, poderiam se enrolar nos membros da vítima em uma fração de segundo e roubar-lhe a liberdade com a força de uma corda de piano.
E não era tudo. A verdade era que não era água que estava na toca com bordas de pedra das três irmãs. As pedras sobrenaturais desviavam o aqueduto e faziam a água fluir em ambos os lados, enquanto seu covil estava de fato cheio de uma secreção do próprio cabelo. O líquido fluía sutilmente para complementar os movimentos suaves do cabelo, girando-o, e até mesmo D... Com um sentido de tato muito mais sensível do que o dos humanos, não tinha sido alertado da presença dos fios. Sem que D soubesse, o cabelo tinha subido de sua cintura e se enrolado em seus pulsos e braços, bem como em seus ombros e pescoço, restringindo seus membros.
Ainda mais perturbador, o resto daquelas inúmeras mãos... Não, tentáculos, tinham começado a deslizar pelos punhos e costuras de suas roupas, rastejando sobre ele, esfregando contra sua carne nua, provocando-o, conspirando para fazer de D um escravo do desejo inflamado. Não importa o quão resoluta fosse sua vontade, a razão de uma pessoa se dissolveria após alguns segundos desses movimentos delicados, reduzindo-os à inconsciência movida pela luxúria. Essa era a tortura obscena das Medusas de Midwich, e ninguém conseguia resistir a ela.
— Bem, você veio nos desejar? — perguntou a irmã mais velha. — Normalmente, nós tiraríamos sua vida neste momento. Assim... — com suas palavras como sinal, as três cabeças se viraram no ar para separar seus cabelos. A catarata negra mudou seu curso, e três longos pescoços listrados de preto e azul, assim como o enorme torso que os sustentava, apareceram. O torso era tão grosso que dois homens adultos teriam dificuldade em alcançá-lo. Os longos pescoços mergulharam em D, envolvendo o homem poderosamente construído, mantido cativo pelos laços de seus cabelos pretos. Por sua vez, o cabelo continuou seus pequenos movimentos de contorção abaixo das roupas de D.
— Podemos quebrar seus ossos quando nos convier. — disse a irmã mais velha, seus olhos vermelhos em chamas enquanto olhava para o rosto de D. O fogo em seus olhos era um inferno de luxúria. — Mas você é um homem tão lindo. Um homem tão bem proporcionado. — sua língua lambeu a bochecha de D.
— Verdadeiramente. Nos últimos três séculos, não vimos ninguém tão bonito. — os lábios úmidos da segunda irmã brincaram com o lóbulo da orelha de D por trás. Seu hálito quente e rançoso soprou em seu ouvido.
— Porém não vamos te matar. Nós três cuidaremos para que prove mais do que sua cota de êxtase sobrenatural, e então o drenaremos até a medula. — a irmã mais nova gemeu as palavras.
A fonte da vida das Medusas de Midwich não era apenas a energia que obtinham do consumo de organismos vivos. Com habilidades bizarras que somente demônios possuíam, elas reduziam homens robustos e mulheres adoráveis na flor da juventude a criaturas lascivas doloridas de desejo, então absorviam a aura de puro êxtase que as vítimas irradiavam em seu auge. Esse era o segredo da imortalidade das três irmãs, e era assim que viviam desde antes dos vampiros, desde os tempos antigos em que os humanos governavam.
Claro, isso não queria dizer que se alimentariam de qualquer um. As irmãs eram gourmands¹ à sua maneira. Embora o Conde tivesse enviado centenas de pessoas para o mundo subterrâneo, e outras ainda tivessem entrado por várias entradas, as irmãs não sentiam prazer como esse há séculos, e devoravam a carne de suas vítimas avidamente, contudo sem alegria, ano após ano. Agora, havia chegado a hora de o prazer queimar seu corpo compartilhado mais uma vez. Um rubor inebriante tingiu os três rostos lindos, seus olhos dançaram com chamas, e o hálito quente saindo de seus lábios vermelhos ameaçava derreter o rosto gelado e lindo de D.
— Bem, agora... — a irmã mais velha gemeu. Três pares de lábios úmidos e encantadores se fecharam no firme portão de ferro que era a boca de D.
No instante em que seus lábios encontraram os dele, as irmãs viram... Viram a luz carmesim de sangue brilhando nos olhos de D. Isso desferiu um golpe misterioso em suas mentes perversas. Naquele instante, as três irmãs sentiram uma doce emoção percorrendo seus corpos, algo que nunca tinham experimentado antes.
—Oh, esses lábios... — disse a irmã mais velha com uma voz rouca.
—Mostrem-me suas gargantas. — uma voz baixa e enferrujada ordenou.
Sem tempo para compreender que era a voz de D que ouviam, as irmãs levantaram seus pescoços como uma só e trouxeram a base branca e lisa de suas gargantas aos lábios de D. Algo lhes disse que não havia outra maneira de sufocar a excitação febril que roía seu caminho através de seus corpos. A inteligência das Medusas de Midwich não estava mais funcionando corretamente.
— Desfaça seu cabelo.
Os membros de D foram libertados em seguida. Sua mão direita devolveu sua espada à bainha enquanto sua esquerda pegou um punhado de cabelo.
— Uma armadilha com isca de prazer... No entanto, quem pegou quem? — antes que suas palavras murmuradas desaparecessem, D largou os fios que segurava e puxou os três longos pescoços para si com ambos os braços. — Eu não gosto de fazer isso, entretanto é a única maneira de encontrar uma saída daqui. Alguém está me esperando.
Enquanto ele falava, suas sobrancelhas de repente se ergueram e seus olhos reviraram. Seus lábios se abriram, expondo um par de presas. Brutal e maligno, seu rosto era o de um vampiro.
Ali na escuridão, o que aconteceu nos momentos que se seguiram?
Os gritos das mulheres se fundiram com o barulho repetido de suas caudas batendo na superfície da água, sugerindo que delícias sobrenaturais tinham acabado de tomar conta delas. Foram as irmãs que caíram na armadilha do prazer. Em pouco tempo, houve o som de algo pesado caindo na água três vezes seguidas, e então D rapidamente deu o comando.
— Levantem-se.
Torcendo seus torsos e pescoços serpentinos, as três irmãs se levantaram outra vez. Uma sombra oca agarrou-se a seus semblantes, e seus olhos injetados de sangue estavam tão úmidos quanto à névoa, enquanto o desejo sufocava a vitalidade delas. E era assustador como seus rostos brilhantes e oleosos estavam desprovidos de sangue, com um brilho como parafina. Na base de cada um dos três pescoços, um par de pontos vermelhos profundos podia ser visto. Marcas de presas.
Quem poderia imaginar que o sangue demoníaco adormecido dentro de D despertaria no último segundo possível? Ele limpou a boca com as costas da mão. Agora, enquanto seu lindo semblante retornava à fria fonte da montanha que sempre foi, ordenou que as três irmãs o levassem a uma saída em uma voz que parecia um gemido de dor.
As três cabeças balançavam sem palavras no ar, então se moveram para a escuridão. Enquanto D as seguia e desaparecia na escuridão também, uma voz provocadora podia ser ouvida em volta de sua cintura.
— Não importa o quanto você odeie, não pode lutar contra seu sangue. Esse é o seu destino, e sabe disso, está gravado até em seus ossos.
Em uma fração de segundo veio a resposta.
— Cale-se! Não me lembro de ter dito para você sair! Volte para lá!
Os gritos de raiva claramente pertenciam a D. Então, quem estava falando antes? O que D poderia querer dizer com aquelas expressões estranhas? E, acima de tudo, por que seu exterior frio como gelo se despedaçou, mesmo que apenas por um momento?
Enquanto a borda das planícies engolia o último resquício de brilho do pôr do sol, e Doris continuava esperando por D, o bugue do Dr. Ferringo parou em sua casa. Doris ficou um tanto envergonhada e tentou fazer o médico ir embora. Médicos eram preciosos demais na Fronteira para colocá-lo em tal perigo. Afinal, essa luta era sua e somente sua. Ela misturou um sedativo no jantar de Dan e o garoto já estava dormindo um sono profundo. Essa era talvez a melhor coisa a fazer com o garoto, já que um Nobre perseguindo sua presa nem sequer daria uma olhada em ninguém que não estivesse em seu caminho.
— Hmm, doutor, estou um pouco ocupada hoje com as coisas aqui na fazenda. — Doris o chamou da varanda.
Porém o médico respondeu.
— Está tudo bem, não me importo. Estou apenas em uma visita domiciliar, posso incomodá-la com um copo d’água?
Dissipando suas objeções com um aceno de mãos, ele foi em frente e abriu a porta, avançou para a sala de estar e se instalou no sofá.
Dr. Ferringo era amigo do falecido pai dela, trouxe Doris e Dan ao mundo com suas próprias mãos e, desde a morte de seus pais até hoje, os ajudou de inúmeras maneiras. Por causa disso, Doris não podia muito bem expulsá-lo de seu lado. Para piorar as coisas, por algum motivo o médico começou a contar suas aventuras juvenis lutando contra criaturas sobrenaturais... Ou “as malditas coisas”, como gostava de chamá-las, e Doris não teve outro recurso a não ser sentar e ouvir com atenção. O homem devia estar ciente de que era provável que o Nobre viesse buscá-la, então teve de se perguntar por que ele parecia tão decidido a ficar por perto.
A noite se aproximava a cada minuto que passava, e D ainda não havia retornado. No momento em que o sol se pôs, Doris resolveu lutar sozinha. Todos os armamentos e armadilhas espalhados pela fazenda foram verificados duas vezes, contudo só ficou com mais medo. E agora não tinha apenas a si mesma, como também o médico para se preocupar.
Não importa o que aconteça comigo, tenho que proteger o Doutor a todo custo. Por favor, não o deixe atacar até que Doutor tenha ido embora. Enquanto fazia esse desejo, outra preocupação irritantemente surgiu nela.
Não importa o que aconteça, não posso me deixar pensar nisso. Se ele me fizer um deles, o que acontecerá com Dan? Não poderá viver o resto da vida sabendo que seu único parente de sangue é da Nobreza... Seria um fardo muito grande para carregar. Nada feito, Doris. Tenha seus braços e pernas arrancados tentando se for preciso, mas lute contra esse desgraçado. A bravura que reuniu durou apenas um segundo antes de afundar na sombra de seus medos. Junto com séculos de condicionamento psicológico, o horror de ser vítima das presas perniciosas da Nobreza tinha poder sombrio mais do que suficiente para intimidar uma jovem de dezessete anos, não importa o quão distinta lutadora pudesse ser.
Quando os ponteiros do relógio indicaram nove e meia da noite, Doris por fim falou.
— Bom, Doutor, acho que vou dormir agora.
Então, por favor, apresse-se e vá para casa, insinuou Doris, contudo o Dr. Ferringo não deu sinais de se levantar. Em vez disso, disse algo que a chocou.
— Você terá um cliente perigoso lhe fazendo uma visita muito em breve.
— É verdade, doutor, então seria melhor ir embora...
— Meu Deus, mas você é um amor... — disse o médico idoso, cobrindo-a com um olhar de afeição sem limites. — No entanto há um tempo e um lugar para contenção. Não precisa ser assim comigo. Dezessete anos atrás, eu te trouxe para este mundo com minhas próprias mãos, e você sempre foi como uma filha para mim, não é? Agora, esse velho idiota não é do tipo que fica parado enquanto uma jovem luta com um demônio vindo direto do inferno.
Enquanto Doris estava na porta da sala de estar observando o velho, seus olhos brilhavam com lágrimas.
— Não fique tão deprimida. — disse o velho alegremente. — Posso não parecer, entretanto fui eu quem ensinou ao seu pai os truques do comércio da Caça ao Lobisomem.
— Eu sei. É só que...
— Se sabe, então por que não para de choramingar? Claro, é interessante ver uma pequena irascível como você deixar cair algumas lágrimas de vez em quando. De qualquer forma, onde está aquele rapaz? Mesmo o contratando para proteção, quando a noite começou a cair ele fugiu, não é? Sua pessoa era bastante assustadora, contudo acabou se revelando um vagabundo inútil, não é mesmo?
— Não, não se revelou! — até aquele ponto, Doris ficou em silêncio, tocada por suas palavras e concordando com a cabeça, contudo essa reviravolta repentina e sua exclamação fizeram o velho médico pular em seu assento. — Esse não é o tipo de homem... Uh, quero dizer, não é do tipo que foge. Não, senhor. A razão pela qual não está aqui esta noite é porque foi sozinho ao castelo do Conde. E ainda não voltou. É só... Algo deve ter acontecido, tenho certeza...
Uma luz inefável brilhou nos olhos do Dr. Ferringo.
— Então você estava meio que... Agora entendo... Não sabia que se sentia assim sobre ele.
Doris recuperou a compostura e se apressou em enxugar as lágrimas.
— O que quer dizer com isso? Não é como se eu... Quero dizer...
O médico sorriu para a jovem enquanto um rubor rosado inundava seu rosto. Então fez um aceno gentil com as mãos.
— Ok, ok. Foi um equívoco meu. Se o considera tanto, então não precisamos nos preocupar com sua pessoa. Tenho certeza de que voltará em breve. Até que volte, o que me diz sobre criar coragem para capturar o Conde?
— Claro... — Doris respondeu com um aceno alegre, então de repente, com grande apreensão, perguntou. — Como faremos?
Não havia precedente para um humano capturar um membro da Nobreza... Um vampiro. Batalhas entre as duas espécies costumavam ser uma questão de matar ou ser morto. Nem era preciso dizer que um lado acabava morto com mais frequência. Particularmente quando se lutava à noite, no elemento da Nobreza, as respectivas armas e habilidades dos combatentes tornavam o resultado dolorosamente óbvio.
— Com isso... — o médico idoso tirou um pequeno frasco de vidro de sua fiel bolsa médica. Estava cheio até o gargalo com grânulos amarelados.
— O que diabos é essa coisa? — o tom de Doris era uma mistura de expectativa e receio.
O Dr. Ferringo não respondeu, apenas tirou um envelope amassado da mesma bolsa e desdobrou a carta que continha, estendendo-a para Doris.
No segundo em que pôs os olhos nas letras rabiscadas em tinta à base de seiva no papel amarelado, Doris se virou para o médico com uma expressão perplexa.
— Esta caligrafia... Meu pai escreveu isto...
Sua cabeça grisalha balançou em concordância.
— Seu querido pai costumava me enviar estes enquanto estava na estrada aprimorando suas habilidades de luta, antes de seu irmão e você nascerem. Todavia este foi o último deles. Se ler, verá que relata um encontro entre seu pai e um vampiro.
— Meu pai e um vampiro? — Doris esqueceu todo o resto e começou a ler a carta. A primeira frase informava ao leitor que havia chegado ao seu alojamento. Então, suas próprias letras ficaram confusas de excitação e medo.
Eu encontrei. A fraqueza do bastardo é um t...
Era tudo. Depois da última letra, o restante da folha era apenas uma extensão solitária de papel áspero e amarelado. Doris fixou um olhar confuso no médico idoso.
— Por que meu pai não terminou o que estava escrevendo? Havia algo em alguma de suas outras cartas?
O médico balançou a cabeça.
— Enquanto seu pai estava escrevendo aquela carta em seu alojamento, ele foi atacado por um vampiro, todavia conseguiu se defender. Não há dúvidas de que seu pai de alguma forma descobriu alguma fraqueza deles. Isso é afirmado com veemência em outra carta sua. A questão é que lutou contra o demônio, colocou sua mente em ordem e tinha acabado de pegar uma caneta para registrar sua descoberta quando percebeu que tinha esquecido completamente qual era a descoberta.
— Está falando sério? Como algo assim pôde acontecer?
— Explicarei a respeito mais tarde. De qualquer forma, menos de cinco minutos depois que o perigo passou, seu pai se viu parado como um zumbi com uma caneta na mão. Como um homem possuído, ele vasculhou suas memórias, vasculhou seu cérebro e, depois de um tempo, até tentou reencenar sua própria metade do combate, porém todos os seus esforços foram em vão. O vampiro apareceu e os dois se enfrentaram. Então, quando toda a esperança parecia perdida, conseguiu por pouco fazer seu inimigo fugir... Disso conseguia se lembrar, porém a forma daquele ataque decisivo e a maneira como o aprendeu foram apagados de sua memória.
— Por quê? Como aconteceu?
Ignorando a mesma pergunta de Doris pela segunda vez, o médico continuou.
— Tínhamos aquele último ‘t’ como uma dica, contudo seu pai nunca descobriu o que significava. Tentou escrever outra vez sobre como a situação se desenvolveu em outra carta e a enviou para mim, confiando que conseguiria fazer algo a respeito. Infelizmente, não consegui corresponder às suas expectativas...
— Bem, se for esse o caso... — disse Doris, esquecendo o perigo que se aproximava cada vez mais e se deixando levar pelo frenesi. — Tudo o que temos a fazer é resolver o mistério do ‘t’ para descobrir qual é a fraqueza da Nobreza, certo? — sua voz tremeu de expectativa, no entanto não demorou a murchar. Ela reconheceu que a sombra agarrada ao rosto do médico idoso dizia que a situação não era apenas grave, mas quase sem esperança.
No passado, tentativas de aprender uma maneira definitiva de se proteger de vampiros foram feitas várias vezes, mas todas se mostraram infrutíferas. Embora os humanos devam ter tido ampla oportunidade de aprender esse segredo nos incontáveis conflitos que ocorreram desde que sua espécie perdeu o direito de governar o mundo, nenhum método desse tipo foi passado para a posteridade. Agora, eras se passaram desde que alguém tentou descobri-los.
— A Nobreza vai nos derrotar afinal, não é? Quero dizer, se eles não têm nenhuma fraqueza...
Quando o Dr. Ferringo ouviu as palavras de Doris rastejando pelo chão como um cachorro espancado, balançou a cabeça e afirmou com firmeza.
— Não. Se fosse esse o caso, não teríamos esses rumores sendo passados todos esses anos de que há coisas que podem machucá-los. Seu próprio pai não afirmou que conseguiu expulsar um vampiro de uma maneira ou de outra? Seu pai não teria mentido para salvar sua própria vida. Ouvi falar de cavaleiros e viajantes que tiveram experiências semelhantes à sua, e até falei com alguns eu mesmo.
— E descobriu alguma coisa?
— Não, todos tiveram a mesma coisa que aconteceu com seu pai. Escaparam das presas repugnantes do demônio de alguma forma... Ou melhor, forçaram o demônio a escapar. E ainda assim, apesar de tal feito, nenhum conseguia se lembrar de nada sobre o que fizeram.
Doris ficou sem palavras.
— Mais recentemente, fiquei tentado a ver esses rumores de uma fraqueza na Nobreza como lendas nascidas de ilusões, porém vasculhei uma montanha de registros e, com base nos casos reais que consegui reunir, tenho certeza de que uma fraqueza de fato existe. As pessoas apenas não conseguem se lembrar do que é. Em minha opinião, é um tipo de manipulação de nossas memórias.
— Manipulação de nossas memórias? — Doris franziu a testa.
— Para ser mais preciso, talvez pudéssemos chamar de uma edição seletiva e automática de nossas memórias. A saber, nossas mentes foram programadas para apagar automaticamente todas as memórias de um determinado tipo.
— Você quer dizer, memórias de suas fraquezas? De armas que podem afastá-los? — sem que se desse conta, Doris estava tentando espiar dentro da cabeça do velho. Era isso que o pó no frasco realmente era?
Observado por olhos que eram um campo de batalha entre esperança e incerteza, o médico continuou sem se deixar abater.
— Lembre-se, estamos falando sobre os bastardos que governaram o mundo por dez mil anos. Tenho certeza de que seria brincadeira de criança para eles alterarem o DNA humano e reprogramarem nossas mentes para eliminar de maneira seletiva quaisquer memórias desse tipo. Essa é uma teoria que existe há algum tempo e, com base em minha própria pesquisa, entrei nesse campo. No geral, não sou do tipo que concorda com teorias quando não conheço as pessoas por trás delas, contudo o que é certo é certo. Sendo esse o caso, o resto é simples.
— O resto é?
— Tudo o que temos que fazer é trazer essas memórias de volta.
Doris engasgou.
— É mesmo possível fazer isso?
O médico parecia muito satisfeito consigo mesmo enquanto rolava o frasco em questão na palma da mão.
— Aqui temos o fruto desse esforço. Hipnotizei uma dúzia de homens e mulheres que entrevistei e tentei regredi-los com a ajuda de drogas estimulantes de reconstituição que obtive da Capital. O que tenho aqui é algo que dois deles mencionaram. Veja, ainda com toda a sua ciência, as criaturas da noite não conseguiram apagar por completo nossas memórias.
Doris notou que o médico pareceu hesitar na última frase, no entanto não conseguiu entender o porquê. Ela buscou um assunto diferente.
— Entretanto se o que estiver dizendo for verdade, doutor, nós dois não perderemos toda a memória desse pó em breve?
— Não, estou bem até agora. É apenas uma hipótese minha, mas a perda de memória só ocorre quando a mente subconsciente tem provas reais de que descobrimos uma fraqueza da maldita Nobreza. No fundo do nosso coração, nem você nem eu acreditamos na eficácia deste pó. Como resultado, a programação dos inimigos também não entrou em ação.
— Então por que não escrevemos em algum lugar?
— Não nos faria bem algum. Ao ler, até mesmo a pessoa que o escreveu tomaria como delírios iludidos de um louco.
Uma Doris um tanto desanimada mudou de assunto.
— Então esse pó é o mesmo ‘t’ que estava na carta do meu pai?
Mais uma vez o médico balançou a cabeça.
— Receio que não. Pensei muito no assunto, porém não consigo conectar o pó com essa inicial. Alguns podem dizer que seu pai, sobrecarregado pela excitação dessa grande descoberta, escreveu errado, embora não acredito que seja esse o caso. A razão pela qual não digo é porque a maioria dos outros entrevistados também não mencionou o pó. Acho que é seguro assumir que a letra ‘t’ se refere a algo diferente.
— Contudo se alguns deles conseguiam se lembrar do pó, por que não se lembravam da outra coisa?
O Dr. Ferringo hesitou. E então começou a falar no tom mais grave que Doris já tinha ouvido.
— Sempre senti que havia algo um tanto irônico sobre as relações entre humanos e nobres, na visão da Nobreza sobre a humanidade, para ser mais específico. Em suas circunstâncias atuais, não posso esperar que você aprecie isso, todavia eles podem muito bem sentir um tipo de afeição por nós.
— Que diabos! Os nobres acham que são nossos amigos? É ridículo! — mais áspera do que seu tom foi a maneira como a mão de Doris puxou o cachecol em volta do pescoço. Pela primeira vez na vida, olhou feio para o médico idoso. — Não me importa quem você é, doutor, isso é... Eu não tenho nem palavras...
— Não faça essa cara. — o médico acenou com as mãos em uma tentativa de apaziguá-la. — De forma alguma quer dizer que toda a Nobreza se sente assim. Qualquer exame dos fatos históricos mostrará que, na preponderância dos casos, eles não demonstram afeição, mas agem como se os seres humanos fossem inferiores às máquinas. Emocionalmente falando, se assumirmos por um momento que têm emoções, até noventa e nove por cento dos nobres não são diferentes do senhor que a atacou. No entanto é muito difícil descartar a possibilidade de que o outro um por cento exista. Terei que relatar todos os fatos que descobri para você outro dia...
Eu vou ver outro dia? Doris se perguntou. Além da janela, algo maligno estava a caminho, rasgando o agradável e doce ar da noite primaveril.
O Dr. Ferringo não estava mais olhando para Doris. Seus olhos pareciam pregados em um ponto no chão enquanto continuava a expor suspeitas de longa data.
— Por exemplo, por que fariam distinções entre suas fraquezas e as armas que as exploram? Por que alguma memória desse pó permaneceu quando poderia ter sido apagada tão bem quanto o que quer que o ‘t’ represente? Meu palpite é que, comparado a essa coisa do ‘t’, o pó é um obstáculo menor, na melhor das hipóteses. Será que os desgraçados estão apenas nos provocando? É o que estão dizendo, ‘Deixe-os ter uma fraqueza menor como essa’, como se nos jogassem um osso? Se for esse o caso, então por que não tornar tal informação de conhecimento comum desde o início? — aqui as palavras do Dr. Ferringo sumiram. Pausando um pouco, ele acrescentou. — Esta é a conclusão a que cheguei depois de uma pequena e humilde investigação que ocupou metade dos sessenta anos deste velho idiota, eu encaro isto como um desafio de uma raça que atingiu o auge e agora desliza para a extinção. É um desafio oferecido a nós, humanos, uma raça que nem pode começar a ser medida contra eles. Porém podemos eventualmente chegar ao seu nível, ou talvez até superá-los. E acredito que é isso que eles dizem: ‘Se vocês, humanos, querem herdar nosso trono, então tentem nos levar até a submissão com seu próprio poder. Se vocês têm o pó, então tentem resolver o mistério do ‘t’. E quando tiver resolvido, tente evitar que seja envolto outra vez nas brumas do esquecimento’.
— É impossível... — para Doris, as palavras que saíram de seus próprios lábios soaram a um milhão de milhas de distância. — Isso os tornaria como um instrutor treinando um estagiário de Caçador...
Embora tenha dado um leve aceno de cabeça, não estava claro se o médico idoso realmente entendeu as palavras de Doris. Seu olhar não se desviou nem um pouco quando disse.
— Não é algo que a Baixa Nobreza seria capaz. Pode muito bem ser...
— Pode muito bem ser o quê?
— Ele. Toda a verdadeira Nobreza do mundo estava unida sob a mil Grande Nobreza, os sete Reis e o lendário senhor das trevas que governava todos eles... O grande vampiro, o rei dos reis, Dra...
Naquele momento, uma onda de tensão varreu o semblante de Doris.
— Doutor! — ela gritou, mas soou mais como um pedido de ajuda do que um aviso. Voltando à realidade, o médico virou a cabeça para seguir Doris enquanto esta se dirigia para a janela da sala de estar.
A luz da lua nas planícies frias não mostrava sinais de nada em movimento, porém os ouvidos de ambos captaram os sons de rodas de carroça e cascos batendo em terreno distante.
— Parece que está chegando.
— Tenho uma bela festa de boas-vindas preparada para ele. — embora Doris tivesse recuperado o semblante robusto de uma Amazona, no fundo do seu coração a garota deixou escapar um grito lamentoso.
Depois de tudo, você não voltou a tempo, D.
Os ciborgues negros pareciam correr em nuvens sobrenaturais e, quando seus cascos ecoaram tão perto que era impossível que Doris estivesse enganada, ela foi para o outro lado da sala de estar e torceu uma das máscaras cerimoniais prateadas que adornavam a parede à direita.
Com um som fraco, parte do chão e da parede girou e saiu de vista. Em questão de segundos, um console de controle de madeira e uma poltrona apareceram. Embora o console de controle em si fosse de madeira, o topo pontilhado de interruptores e alavancas era de ferro, com uma profusão de lâmpadas coloridas e medidores aumentando a confusão. Este era um centro de controle de combate, o pai de Doris havia convocado um artesão da Capital para instalá-lo. Todas as armas da fazenda podiam ser controladas daqui. No que diz respeito a estar preparado para os ataques das criaturas que corriam soltas na natureza, era o melhor que o dinheiro podia comprar. Uma luneta prismática de campo total abaixada do teto.
— Hah! Naquela época, perguntei ao seu pai que tipo de trabalho estava fazendo, e sua resposta foi que estava colocando um novo conversor solar. Seu pai foi astuto por esconder isso de mim.
Não houve tempo para responder às lembranças do médico ainda tranquilo. A lente prismática do visor mostrou uma carruagem preta puxada por uma equipe de quatro cavalos descendo a estrada em direção à fazenda a toda velocidade. A mão de Doris alcançou uma das alavancas. O visor também funcionava como um sistema de mira.
— Prepare-se. — disse o Dr. Ferringo enquanto olhava pela janela, com a pequena luneta na mão. — Ainda tem a barreira eletromagnética... — antes que terminasse de falar, o portão de madeira com três barras se abriu sem um sussurro. Quando a carruagem preta estava prestes a passar pelo portão como uma rajada de vento, foi envolvida por um clarão ofuscante de luz.
Poderosa o suficiente para carbonizar um dragão menor através de escamas resistentes, de outra forma imune a lâminas, a barreira eletromagnética desencadeou uma chuva de faíscas que transformou a noite mais escura no dia mais brilhante por um momento fugaz. Explodindo através de uma flor gigante e incandescente de fogo, a bola de luz branca forçou seu caminho para a fazenda. O cavalo, o cocheiro, as rodas da carroça... Chamas brancas grudavam em todos eles. Era uma visão estranha, como uma carruagem do inferno que de repente apareceu na Terra.
— Nós os pegamos. O que diabos... — a exclamação confusa de Doris veio enquanto observava os cavalos ciborgues, assim que romperam a barreira, ela esperava que os quatro corressem direto para o jardim da frente como um verdadeiro furacão, mas nenhum casco estava fora de sintonia enquanto executavam uma parada brilhante bem no local.
As chamas magnéticas girando ao seu redor se dispersaram rapidamente. O inimigo estava protegido por uma barreira mais poderosa.
— Ainda não. Veja! Ele está saindo! — mais uma vez, sua mão foi contida pelo comando esperançoso do médico, porém em sua voz Doris captou um tom de tensão e medo que superava em muito a emoção anterior. A personificação da coragem e do intelecto que o médico idoso era, o dano de dezenas de séculos de lavagem cerebral pela Nobreza havia se infiltrado bem em seu subconsciente.
A porta preta se abriu, e uma figura enorme vestida de zibelina desceu os degraus que automaticamente se projetavam no chão.
— Deve ser algum tipo de idiota... Olhe para ele, pulando para fora como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo.
Aparentemente encorajada, a voz de Doris ainda não tinha força. Seu inimigo sabia que qualquer defesa que estivesse pronta para lançar sobre ele não representaria nenhuma ameaça. Quando o vilão que havia deixado sua marca imunda em seu pescoço mostrou suas presas peroladas em um sorriso e começou a ir sozinho em direção a casa, Doris puxou a alavanca.
Por toda a fazenda havia o som de uma mola sendo liberada após a outra. Pedaços pretos voavam pelo ar em direção ao Conde, apenas para ricochetear a centímetros do alvo. O que caiu no chão eram pedras de mais de um metro de diâmetro. Disparados em rápida sucessão, todos os mísseis rochosos foram roubados de sua energia cinética por uma barreira invisível, caindo ao redor do Conde que avançava sem pressa.
— Justo como imaginei... Não será fácil. — Doris puxou uma segunda alavanca. Desta vez, eram dardos de aço que os lançadores despejavam. Todos os primeiros dez ricochetearam, mas o décimo primeiro e último dardo perfurou o abdômen do Conde.
— Eu o acertei! — Doris exclamou, apertando a alavanca com tanta força que ameaçou quebrá-la. O que congelou seu sorriso foi a maneira como o Conde temporariamente imóvel deu um sorriso horrível antes de retomar seu passo deliberado, o dardo de aço ainda saindo de seu estômago e costas.
O desgraçado está tentando me dizer que nem precisa de seu campo de força para parar meus ataques!
Parecia que uma pata gelada de medo estava agitando seu cérebro quando Doris de repente percebeu que não havia necessidade de um vampiro ‘ir buscar’ uma antiga vítima. Para aqueles que sentiram o beijo de sangue em seu pescoço apenas uma vez, uma única palavra do demônio do lado de fora de sua porta seria suficiente para chamá-los para os braços da Morte. Era justo esse tipo de coisa contra a qual D estava se protegendo quando a deixou inconsciente na primeira vez que ela teve convidados indesejados.
— O maldito está brincando comigo! — Doris empurrou e puxou alavancas como uma mulher possuída. Enquanto nada perfurasse seu coração, um vampiro não morreria. Embora ciente desse fato imutável, ver o poder assustador em ação com seus próprios olhos roubou todo o julgamento frio que a filha de um caçador habilidoso deveria possuir. A garota foi roubada de sua razão pelo mesmo medo que adormecia em todos os mortais, o medo da escuridão desconhecida.
Metralhadoras escondidas nos arbustos cuspiam fogo, e flechas com pontas explosivas incendiadas por uma lente na unidade de armazenamento solar caíam como chuva.
Através da fumaça oleosa, das explosões de fogo e do rugido ensurdecedor que o cercava, o Conde sorriu. Estava claro que essa era a resistência mais rígida que a humanidade poderia oferecer no momento. Sua espécie permaneceu na Terra, resistentes como baratas, enquanto sua espécie deslizava silenciosa e inevitavelmente em direção à extinção, diminuindo como a luz do sol poente.
De repente, sua raiva explodiu, consumindo toda a admiração que sentia pela resistência que sua presa oferecia. Seus olhos se tornaram chamas. Enquanto rangia suas presas nuas, o Conde correu para a varanda, subiu as escadas em um único salto, arrancou o dardo de seu abdômen e arremessou a arma na porta. A porta se soltou das dobradiças e caiu dentro da casa. Atrás da porta, pendia uma rede preta de ferro. No instante em que descuidadamente enfiou o dardo de aço nela para tirá-la do caminho, houve um clarão no ponto de contato, e o Conde sentiu uma violenta sensação de queimação fluindo em seu corpo através da mão que tinha em volta da arma. Pela primeira vez, a carne sob sua vestimenta preta estremeceu em agonia, e seu cabelo se arrepiou. As malditas habilidades regenerativas do vampiro fizeram o melhor para neutralizar o violento choque elétrico e então começaram a ajustar o arranjo molecular das células que precisavam ser removidas. O choque que recebeu veio de um transformador que converteu energia coletada nos painéis solares no telhado durante o dia em uma carga de alta tensão de cinquenta mil volts. Mesmo sentindo suas células carbonizadas e nervos destruídos pelo choque elétrico precipitado, o Conde balançou o dardo. Com um presente de despedida de nova agonia e uma chuva de faíscas, a rede condutora de fio entrelaçado rasgou e caiu no chão.
— Muito bom para uma mulher solitária. — o Conde murmurou com admiração, seus olhos injetados. — É a lutadora que imaginei que seria. Criança, preciso do seu sangue a qualquer custo. Espere por mim.
Doris sabia que havia esgotado todos os meios à sua disposição. Quando o monitor foi trocado para o interior da casa, o rosto de um demônio sedento preencheu a tela. De repente, a porta da sala de estar foi aberta de volta para dentro do quarto. Doris saltou do console de controle e ficou na frente do Dr. Ferringo para protegê-lo.
— Criança... — disse a figura na porta. — Enquanto você luta admiravelmente para uma mulher, a batalha está decidida. Agora terá de me favorecer com um gostinho do seu sangue quente.
O estalo de um chicote cortou o ar.
— Venha! — o Conde ordenou com uma voz penetrante.
A ponta do chicote perdeu o ímpeto no ar, e a arma caiu no chão em espirais. Doris começou a andar com os passos trêmulos de uma marionete, porém o médico idoso agarrou seu ombro. Sua mão direita cobriu suas narinas, e a jovem caiu no chão sem fazer barulho. O médico manteve um pano embebido em clorofórmio escondido em sua mão o tempo todo.
— Então pretende interferir comigo, velho tolo? — perguntou o Conde com uma voz dura e pálida, desprovida de qualquer emoção.
— Bem, não posso ficar parado e não fazer nada. — o velho respondeu, dando um passo à frente com a mão esquerda cerrada. — Aqui está algo que você odeia... Alho em pó.
Uma onda de inquietação passou pelo rosto do Conde, contudo logo um largo sorriso se abriu em seus lábios.
— Você deveria ser elogiado por sua descoberta, contudo é realmente um tolo. É verdade, sou impotente contra esse cheiro. Pode escapar do meu alcance esta noite. Entretanto, no instante em que confirmar o quão eficaz é contra mim, essa confirmação lhe custará toda a memória daquilo que tem em suas mãos. E amanhã à noite eu voltarei.
— Não vou deixá-lo fazer isso.
— Oh, e o que fará?
— Esse velho tolo também teve uma vida. Trinta anos atrás, Sam Ferringo era conhecido como um caçador de homens-aranha. E sei uma coisa ou duas também sobre como lutar contra sua espécie.
— Entendo. — havia um brilho nos olhos do Conde.
O médico idoso acenou com a mão. Pó e um odor estranho giravam no ar.
Engasgando, o vampiro cambaleou para trás com sua capa sobre o nariz e a boca. Ele foi atingido por uma vontade horrível de vomitar, sentindo-se completamente enervado, como se seu cérebro estivesse derretendo e a própria vida estivesse sendo drenada de seu corpo. As células em sua cavidade sinusal, os nervos olfativos que tornam o olfato possível, receberam um golpe devastador da alicina que dá ao alho seu aroma característico.
— Os dias de sua espécie acabaram. Volte ao mundo de escuridão e destruição! — em algum momento, o Dr. Ferringo puxou uma estaca de 30 centímetros. Com a arma de madeira áspera em sua mão direita, o médico avançou. Bem diante de seus olhos, um pássaro preto abriu suas asas. Era a capa do Conde. Como um ser senciente, ela se enrolou nos pulsos do médico idoso e então girou com força para arremessar o homem para o outro lado da sala, tudo sem que o Conde parecesse levantar um dedo. Este era um dos truques secretos da Nobreza. O Conde o aprendera com ninguém menos que o Ancestral Sagrado de sua raça.
Lutando quase desesperado para se levantar do chão, o médico idoso ficou horrorizado ao ver o Conde, ainda tossindo descontroladamente, agarrando Doris.
— Espere!
O rosto do Conde eclipsou parte da garganta da garota.
O que o médico viu o surpreendeu.
O Conde se afastou, seu rosto pálido. Talvez ninguém nunca tivesse visto um Nobre usar uma expressão de terror tão gritante quanto a que o médico idoso agora testemunhava. Ignorando o médico atônito, a figura de preto desapareceu pela porta, sua capa esvoaçando em suas costas.
Quando o médico idoso por fim se levantou, esfregando o quadril o tempo todo, pôde ouvir o eco das rodas da carroça desaparecendo à distância. De uma forma ou de outra, parece que estamos fora de perigo por enquanto. Assim que essa tremenda sensação de alívio surgiu dentro dele, o Dr. Ferringo de repente teve a sensação de que havia esquecido algo importante e inclinou a cabeça para um lado. Que diabos é esse cheiro? E por que aquele desgraçado saiu fugindo?
Notas:
1. Um gourmand é uma pessoa que sente grande prazer e interesse em consumir alimentos e bebidas particularmente bons.
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