Volume 01 — Capítulo 01: Noiva Amaldiçoada
O sol poente estava manchando os confins da planície, sua tonalidade mais próxima do sangue do que do vermelhão. O vento rosnava como uma fera no céu árido. Na estrada estreita que cortava um mar de grama, alta o suficiente para esconder tudo abaixo dos tornozelos do homem, o cavalo e o cavaleiro solitário cessaram seu avanço como se impedidos pela parede de vento que soprava direto em sua direção.
A estrada subia um pouco, cerca de 20 metros à frente. Depois que superassem a elevação, seriam capazes de inspecionar as fileiras de casas e cinturões verdes de terras agrícolas que compunham Ransylva, apenas outra aldeia neste setor da Fronteira.
Ao pé daquela suave encosta estava uma garota.
O cavalo provavelmente se assustou com sua aparição e parou. Ela era uma bela jovem, com olhos grandes que pareciam arder em chamas. Um pouco bronzeada, tinha suas tranças pretas amarradas para trás. Uma aura indomável, única em todas as coisas que vivem na natureza, emanava de cada centímetro seu. Qualquer homem que a visse, com aquelas características deslumbrantes como a luz do sol no verão, sem dúvida teria sua atenção tomada pelas curvas de seu físico. No entanto, abaixo do lenço azul puído envolvendo seu pescoço, ela estava escondida até os tornozelos pelo material cinza-acinzentado de uma capa impermeável. Exceto talvez por suas sandálias de couro confortáveis e o que parecia ser um chicote preto enrolado em sua mão direita, não usava colares ou torques¹, ou quaisquer outros apetrechos que lhe conferissem uma sensação feminina.
Um cavalo ciborgue antiquado permanecia ao lado da garota. Até alguns minutos antes, a garota estava agachada a seus pés. Mulher selvagem ou não, o fato de ter notado um cavalo e um cavaleiro, sem fugir, mas se aproximando cuidadosa e silenciosamente em meio ao tipo de vento uivante que deixaria os outros cobrindo os ouvidos, e se mantendo firme significava que a garota talvez não fosse a esposa de algum fazendeiro ou a filha de um pioneiro.
Tendo parado por um instante, o cavalo logo começou a avançar. Talvez percebendo que a garota não sairia da estrada, ele parou mais uma vez a cerca de um metro de distância.
Por um tempo, não havia nada além do som do vento correndo pelo chão. No devido tempo, a garota abriu a boca para falar.
— Presumo que seja um andarilho. Você é um Caçador? — seu tom era desafiador e cheio de ousadia, e ainda assim em um tom esgotado.
O cavaleiro sentou em seu cavalo, porém não respondeu. Ela não conseguia ver seu rosto muito bem porque tinha um chapéu de viajante de aba larga sobre os olhos e estava coberto do nariz para baixo por um cachecol. A julgar por sua estrutura poderosa e pelo cinto de utilidades de combate, meio revelado por seu longo casaco preto desbotado, era seguro dizer que não era um trabalhador sazonal ou comerciante lidando com aldeias dispersas. Um pingente azul pendurado logo abaixo de seu cachecol refletia a expressão pensativa da garota. Seus grandes olhos fixos na espada longa amarrada em suas costas. Delineando um arco elegante bem diferente das lâminas retas apreciadas por tantos outros Caçadores, ela falava das vastas extensões de tempo e espaço que seu dono havia viajado. Desconcertada, talvez, pela falta de resposta, a garota gritou.
— Essa espada é só para se mostrar? Se for, vou tomá-la de você para vender no próximo mercado aberto. Coloque-a no chão!
Como se dissesse que se isso não arrancasse uma resposta dele, então o tempo de conversar havia terminado, a garota deu um passo para trás com a perna direita e se agachou em preparação. A mão com o chicote se ergue devagar para seu lado.
O cavaleiro respondeu pela primeira vez.
— O que você quer?
A expressão da garota era de espanto. Embora a voz de seu oponente fosse baixa, e mal conseguisse distingui-la por causa do rosnado do vento, soava como a voz de um jovem de dezessete ou dezoito anos.
— Que diabos... Você é só uma criança! Bem, ainda não vou mostrar nenhuma misericórdia. Mostre-me o que tem.
— Então, é uma bandida? Você é terrivelmente comunicativa para uma.
— Seu imbecil! Se estivesse procurando por dinheiro, acha que eu iria atrás de um vagabundo acabado como você? Quero ver o quão bom é!
O vento soprou com um estalo forte. A garota estalou seu chicote. Não parecia que estava fazendo mais do que brincar levemente com o pulso, contudo o chicote se torceu uma e outra vez como uma serpente negra ameaçadora à luz do sol poente.
— Aqui vou eu! Se quiser comer bem na aldeia Ransylva terá que passar por mim primeiro.
O jovem permaneceu imóvel em cima de sua montaria. Ele não pegou sua espada ou seu cinto de combate. Além do mais, quando a garota viu o quão indiferente ele permaneceu quando desafiado para a batalha por uma jovem bonita que não deu motivos, mas o cobriu com um olhar assassino, um toque de consternação surgiu em sua expressão. Soltando um suspiro áspero, a garota atacou com seu chicote. A arma era feita de cerdas de lobisomem entrelaçadas, cuidadosamente curtidas ao longo de três longos meses com aplicações de gordura animal. Um golpe direto de tal arma rasgaria a carne.
— O quê?
A garota saltou para trás, sua expressão mudou. Seu chicote deveria atingir o ombro esquerdo do rapaz, entretanto por algum motivo, no instante em que o viu atingi-lo, o chicote mudou de direção e disparou em seu próprio ombro esquerdo. O jovem havia revertido os vetores do chicote sem o menor ferimento a si mesmo e voltou o ataque de volta à sua fonte. Compreender a velocidade e o ângulo daquela serpente negra atacando tão rápido que escapava a olho nu, e ter os reflexos necessários para fazer algo a respeito, era algo que desafiava a descrição.
— Droga! Você é bom!
Manuseado por sua mão direita, o chicote não atingiu seu ombro, todavia dançou de volta pelo ar rarefeito, mas a garota ficou paralisada no local e não fez nenhuma tentativa de um segundo ataque. Ela percebeu que suas habilidades de luta estavam tão acima das suas quanto os céus estavam sobre a terra.
— Saia do meu caminho, por favor. — disse o jovem, como se nada tivesse acontecido.
A garota obedeceu.
O jovem e seu cavalo passaram ao lado, porém quando eles deram mais alguns passos, a garota mais uma vez pisou na estrada e gritou.
— Ei, olhe para mim!
No instante em que o jovem se virou, a garota agarrou sua capa com a mão esquerda e a tirou com um único movimento.
Por um momento, o brilho venenoso do crepúsculo pareceu perder sua tonalidade vermelho-sangue.
Sem um único ponto coberto, uma forma nua tão celestial que ninguém poderia tê-la moldado, exceto a própria deusa Vênus, brilhava na brisa. Ao mesmo tempo, a garota estendeu a outra mão e desfez o rabo de cavalo. Sua luxuosa juba negra se espalhava ao vento. Sua nudez sozinha já era linda, porém isso era realmente encantador. O vento girava, trazendo nada além do cheiro de uma mulher em plena floração.
— Vamos tentar de novo!
Mais uma vez seu chicote estalou.
Por meio de um manuseio magistral, a ponta única que assobiava em direção ao jovem se dividiu em oito partes quando estava prestes a atacar. Cada ponta tinha um alvo separado, enrolando-se em seu pescoço, ombros, braços e peito com um tempo ligeiramente diferente, tornando o golpe muito mais difícil de evitar do que se todos atingissem em simultâneo.
— Você caiu nessa. — a garota riu. — É o que ganha por deixar um pouco de nudez distraí-lo.
Ela gritou as palavras, não concedendo nada ao vento rosnador. E então, quase desapontada, acrescentou de repente.
— Você é o nono. Parece que estou sem sorte, afinal. Como vai querer que seja? Largue a arma que tem nas costas e as que estão na cintura e vou acabar com você rapidinho.
A resposta que recebeu foi totalmente inesperada.
— E se disser que não o farei?
A garota ficou indignada.
— Então escolhe como eu te derrubo. Ou te estrangulo ou te arrasto para o chão. Então, qual das duas opções o agrada?
— Nenhuma delas me agrada.
Com suas palavras como sinal para começar, a garota concentrou toda a sua força na mão direita. Seu poder desceu pelo chicote até as pontas, tentando fazer o jovem voar pelo ar. Contudo não o fez! Na verdade, todas as oito pontas passaram direto pelo corpo do jovem sem perder a forma circular!
— O que...
Não apenas surpresa, mas estupefata, a garota ficou paralisada e atordoada. Afinal, ali estava um oponente que havia derrotado um ataque que incorporava cada pedaço de habilidade que possuía sem nem mesmo levantar uma mão...
A montaria do jovem começou a se afastar calmamente.
Embora permanecesse em seu estupor distraído, a garota envolveu sua capa caída em volta de si e correu atrás do jovem com uma velocidade que era difícil de acreditar para pernas tão finas.
— Espere aí. Peço desculpas por essa loucura de agora. Gostaria que me ouvisse. Sabia que você era um Caçador. Melhor ainda, é um Caçador de Vampiros, não é?
O jovem por fim virou os olhos para a garota.
— Estou certa, não estou? Quero contratá-lo!
O cavalo parou.
— Isso não é uma piada. — disse o jovem em um suave tom.
— Eu sei. Sei que os Caçadores de Vampiros são os mais habilidosos de todos os Caçadores. E estou bem ciente de quão temíveis oponentes os vampiros são. Mesmo que apenas um Caçador em mil seja bom o suficiente para passar de nível, suas chances de lutar contra um vampiro e vencer ainda são de apenas cinquenta por cento, certo? Sei de tudo isso. Meu pai também era um Caçador.
Um tom de emoção surgiu nos olhos do jovem. Com uma mão, empurrou para trás a aba do chapéu. Longos, finos e frios, seus olhos escuros eram bem claros.
— Que tipo?
— Um caçador de Lobisomens.
— Entendo, então é daí que tirou aquele truque com o chicote. — o jovem murmurou. — Ouvi dizer que todos os vampiros dessas partes foram exterminados durante a Terceira Guerra de Limpeza. Claro, a guerra foi há uns bons trinta anos, então acho que não podemos dar muita importância a isso. Então, quer me contratar? Imagino que alguém da sua família ou um dos seus amigos tenha sido atacado. Quantas vezes foram caçados?
— Só uma vez, até agora.
— Há marcas de duas presas, ou apenas uma?
A garota hesitou por um instante, então colocou a mão no lenço em volta do pescoço.
— Veja por si mesmo.
Os gritos de feras selvagens levados pelo vento fluíam como bandeiras pelo céu escuro.
No lado esquerdo do pescoço, nas proximidades da artéria principal, um par de feridas purulentas da cor de carne fresca inchava da carne bronzeada pelo sol.
— É o Beijo da Nobreza. — disse a garota em voz baixa, sentindo o tempo todo os olhos do jovem caindo sobre ela do cavalo.
O jovem puxou o cachecol que protegia seu rosto.
— A julgar por esse ferimento, era um vampiro de alguma patente. É surpreendente que consiga se mover. — sua última observação foi um elogio à garota. As reações das pessoas que foram atacadas por vampiros variavam com o nível do agressor, no entanto na maioria dos casos as vítimas se tornavam inúteis como bonecas, com a própria alma sugada delas. A pele delas perdia o tom e se tornavam como parafina, e as vítimas ficavam deitadas na sombra dia após dia com um olhar vago, esperando por uma visita do vampiro e um beijo fresco. Para escapar desse destino, era necessária uma força extraordinária de corpo e espírito. E essa garota era claramente uma dessas exceções.
Entretanto, no momento, a garota tinha a expressão onírica da vítima média.
Ela se perdeu na beleza do jovem desmascarado, com suas sobrancelhas grossas e masculinas, a ponte suave do nariz e lábios bem desenhados que manifestavam a força de ferro de sua vontade. Situado em meio a feições severas compartilhadas apenas por aqueles que passaram pelas inúmeras batalhas de um mundo tomado pela dor, seus olhos abrigavam tristeza mesmo enquanto brilhavam. Esse toque final fez dessa beleza cristalizada a imagem da juventude encarnada, esculpida, por assim dizer, pela própria natureza, perfeita e completa. Porém, a garota foi sacudida de volta aos seus sentidos por algo vagamente ameaçador espreitando nas profundezas de seu olhar. O que enviou um arrepio por sua espinha. Balançando a cabeça, a garota perguntou.
— Então, que tal? Virá comigo?
— Você disse que tinha conhecimento sobre Caçadores de Vampiros. Também está ciente das taxas que eles exigem?
As bochechas da garota foram tingidas de escarlate.
— Uh, sim...
— Sua oferta é?
Quanto mais poderosas as feras e monstros sobrenaturais em que um Caçador se especializava, mais caras eram suas taxas. No caso de Caçadores de Vampiros, ganhavam no mínimo cinco mil dalas por dia. Aliás, um pacote de três refeições de rações condensadas para viajantes custava cerca de cem dalas.
— Três refeições por dia. — disse a garota, como se tivesse acabado de decidir.
O jovem não disse nada.
— Mais...
— Mais o quê?
— Eu. Para fazer o que quiser.
Um leve sorriso surgiu nos lábios do jovem, como se estivesse zombando dela.
— O Beijo da Nobreza é provavelmente preferível a ser levado para a cama por alguém como eu.
— O inferno que é! — de repente, lágrimas brilharam nos olhos da garota. — Se for entre isso ou me tornar uma vampira, não tenho problema com alguém fazendo o que quer comigo. Isso não tem nada a ver com o valor de uma pessoa de qualquer maneira. Contudo se precisa saber, eu sou... Não, esqueça, não importa. Então, que tal? Vai vir comigo?
Observando o rosto da garota por um tempo enquanto raiva e tristeza se misturavam, o jovem assentiu calmamente.
— Muito bem então. No entanto, em troca, quero deixar uma coisa clara.
— O quê? Apenas diga.
— Sou um dampiro.
O rosto da garota congelou. Este homem lindo não poderia ser... Mas, pensando bem, ele era lindo demais...
— Está tudo bem? Se esperar mais um pouco, outro Caçador pode aparecer. Não precisa fazê-lo.
Engolindo o cuspe azedo que enchia sua boca, a garota ofereceu uma mão ao jovem. Ela tentou sorrir, porém saiu rígido.
— Que bom ter você. Sou Doris Lang.
O jovem não apertou sua mão. Tão inexpressivo e sem emoção quanto quando apareceu pela primeira vez, ele disse.
— Me chame de ‘D’.
A casa de Doris ficava na base de uma colina a cerca de trinta minutos a galope de onde os dois se encontraram. Os dois cavalgaram em um ritmo febril e chegaram lá em menos de vinte minutos. No segundo em que encerrou sua discussão com D, Doris esporeou seu cavalo, como se empurrada pelo crepúsculo que se aproximava. Não apenas vampiros, como também todos os monstros e bestas sobrenaturais mais perigosos esperavam até que a escuridão completa caísse antes de se tornarem ativos. Não havia motivo para tanta pressa, porém D permaneceu em silêncio e seguiu sua atraente empregadora.
Sua casa era uma fazenda cercada por pradarias verdejantes que talvez tenham sido tornadas permanentemente férteis pelo Grande Projeto de Restauração da Terra três milênios antes. No centro ficava a casa principal. Construída de madeira e plástico elástico, a casa era cercada por estábulos espalhados, currais de animais e vegetação sintetizadora de proteínas em pomares consistindo em grande parte de termorreguladores presos a folhas reforçadas de material à prova d’água. Os pomares sozinhos cobriam cinco acres, e robôs de segunda mão eram responsáveis por colher a proteína produzida ali. Transportá-la era um trabalho para os humanos.
Quando Doris amarrou seu cavalo ao longo poste de amarração em frente à casa principal, o motivo de seu retorno apressado abriu a porta e saltou para fora.
— Bem-vinda ao lar.
Um garoto de bochechas rosadas de sete ou oito anos gritou da varanda um tanto alta. Ele abraçava um rifle laser antiquado contra o peito.
— Este é Dan, meu irmãozinho. — Doris disse a D como forma de apresentação, e então com uma voz gentil perguntou. — Nada fora do comum enquanto eu estava fora, não é? Aqueles demônios da névoa não voltaram agora, voltaram?
— Nenhum. — o garoto respondeu, estufando o peito em trinfo. — Não se esqueça, eu explodi quatro desses insetos outro dia. Eles estão com tanto medo que não vão ter coragem para voltar. Mas supondo que voltem, vou fritá-los até ficarem crocantes com esta gracinha aqui. — dito isso, sua expressão de repente ficou mal-humorada. — Oh, quase esqueci... Aquele idiota do Greco veio aqui de novo. Carregando um buquê de flores que disse ter trazido da Capital. Ele as deixou aqui e me pediu para passá-las para minha ‘adorável irmã quando ela chegasse em casa’.
— Então o que aconteceu com as flores? — Doris perguntou com interesse óbvio.
A boca do garoto se torceu em um sorriso de alegria.
— Cortadas na unidade de descarte, misturei um pouco de composto e dei para as vacas!
Doris fez um aceno forte e satisfeito.
— Bom trabalho. Hoje é um grande dia. Também temos companhia.
O garoto, que estava dando uma espiada em D enquanto falava com a irmã, agora sorria conscientemente para ela.
— É bem bonito, não é? Então é assim que gosta deles, hein, mana? Você disse que os robôs estavam em tão péssimo estado que estava saindo para procurar alguém para substituí-los, só que me parece que saiu à caça de um homem.
O rosto de Doris ficou de um vermelho brilhante.
— Oh, não seja ridículo. Não fale essas bobagens. Este é o Sr. D. Estará nos ajudando na fazenda por um tempo. E não o atrapalhe.
— Não há nada para se envergonhar. — o garoto riu. — Eu sei, eu sei. Uma olhada nele, e o velho Greco não parece muito melhor do que um sapo comedor de homens. Prefiro muito mais ele também. Prazer em conhecê-lo, D.
— O prazer é meu, Dan.
Sem mostrar sinais de estar incomodado pelo tom sem emoção que D usava mesmo quando se dirigia a uma criança, o garoto desapareceu na casa principal. A dupla o seguiu para dentro.
— Sinto muito, meu irmãozinho deve tê-lo irritado. — disse Doris em um tom de desculpas quando o jantar terminou e enfim conseguiu levar Dan para seu quarto, ignorando os protestos do garoto de que ainda não estava com sono.
D passou a espada que costumava usar nas costas da mão direita para a esquerda enquanto ficava na janela olhando para além da escuridão. Graças ao tempo claro que persistiu nos últimos quatro ou cinco dias, as baterias solares no telhado estavam bem carregadas e uma luz brilhante caía generosamente em cada canto da sala a partir de painéis de iluminação instalados no teto.
Ao que parecia, havia algo sobre o estranho inóspito que o garoto gostava, e se plantou ao seu lado recursando-se a ir embora, implorando para que falasse sobre a Capital, ou para contá-lo sobre quaisquer monstros ou criaturas sobrenaturais que pudesse ter matado em suas viagens. Então, para piorar, criou uma grande comoção quando disse que sua irmã estava sendo chata e agarrou D pelo braço para tentar trazê-lo de volta para seu quarto, onde poderiam conversar de homem para homem a noite toda.
— Ele fica assim porque viajantes são muito raros. E nós geralmente não temos muito a ver com as pessoas da cidade também.
— Isso não me incomoda. Não me ofendo em ser admirado.
Enquanto falava, D não fez nenhuma tentativa de olhar para Doris sentada no sofá, vestindo a camisa e o jeans que havia trocado antes. Seu tom era tão frio como sempre. Cerrando de leve os olhos, falou.
— Agora são nove e vinte e seis da noite, horário padrão da Fronteira. Já que ele já se alimentou uma vez da pessoa que está atrás, não imagino que esteja com tanta pressa, então suponho que depois da meia-noite será a hora de vigiar. Enquanto isso, poderia me contar tudo o que sabe sobre o inimigo? Não se preocupe; seu irmão já está dormindo. Posso dizer pela respiração constante dele.
Os olhos de Doris se arregalaram.
— Consegue ouvir algo assim pela porta e tudo mais?
— E a voz do vento através do deserto, e a canção vingativa dos espíritos vagando pela sombra da floresta. — D murmurou, então veio para ficar ao lado de Doris com os passos suaves de um dançarino.
Quando sentiu aquele rosto frio e justo espiando sua nuca, Doris gritou.
— Pare! — e se afastou sem pensar.
Embora a aversão fosse bem evidente em sua voz, a expressão de D não mudou nem um pouco.
— Vou dar uma olhada em sua ferida. Para ter uma ideia geral de quão poderoso é o inimigo que estou enfrentando.
— Sinto muito. Vá em frente, dê uma olhada. — ela disse, virando o rosto e expondo seu pescoço. Mesmo que o leve tremor de seus lábios fosse um resquício de sua reação segundos antes, a vermelhidão de suas bochechas foi causada, sem dúvida, pelo constrangimento de uma virgem tendo sua carne examinada por um jovem totalmente desconhecido. Afinal, em seus dezessete anos, nunca tinha sequer dado às mãos a um garoto antes.
Segundos depois, a expressão de D tinha um ar distante.
— Quando você o encontrou?
Doris deu um suspiro de alívio ao som da sua voz, que era totalmente sem cadência. Porém por que seu coração tolo estava batendo tão forte? Sem ser afetada por seu pulso acelerado e olhando extasiada para o rosto de D o tempo todo, começou a contar a história daquela noite terrível no tom mais composto que conseguiu reunir.
— Foi há cinco noites. Eu estava perseguindo um dragão menor que se esgueirou para dentro da fazenda enquanto consertávamos a barreira eletromagnética e matou uma de nossas vacas, e quando por fim pensei que tinha acabado com o dragão, já estava escuro como breu. Para piorar as coisas, estava perto do seu castelo. Estava pronta para ir para casa quando aconteceu, a fera moribunda de repente cuspiu fogo e queimou a metade traseira do meu cavalo até virar cinzas. Minha casa fica a quase 50km de distância, e as únicas armas que tinha eram a lança que uso para matar dragões menores e uma adaga. Corri o mais rápido que pude. Devo ter corrido por uns bons trinta minutos quando notei algo, como se houvesse alguém avançando bem atrás de mim!
Doris de repente ficou em silêncio, não só porque a lembrança daquele terror tinha se tornado fresca outra vez, contudo também porque um uivo diabólico tinha acabado de perfurar a escuridão de algum lugar muito próximo. Ela perdeu o fôlego quando virou seu lindo rosto naquela direção, no entanto logo percebeu que era apenas o som de algum animal selvagem. Sua expressão se tornou de alívio. Embora um tanto datada, uma barreira eletromagnética que lhes custou um bom dinheiro selava o perímetro da fazenda, e dentro dessa barreira tinham uma variedade de armas de mísseis instaladas.
Ela retomou o relato de sua experiência horrível.
— No começo, pensei que fosse um lobisomem ou um homem-mariposa venenosa. Mas não havia som de passos ou asas batendo, e nem conseguia ouvi-lo respirando. Entretanto, sabia que havia alguém bem atrás de mim, a uma curta distância, e se movendo na mesma velocidade que eu. Finalmente não aguentei mais e me virei o mais rápido que pude... E não havia nada lá! Bem, houve por uma fração de segundo, só que então ele circulou atrás de mim outra vez.
A memória estava semeando terror no rosto da garota, que mordeu o lábio e tentou forçar sua voz trêmula a sair. D não disse nada, todavia continuou ouvindo.
— Foi quando comecei a gritar. Disse a quem quer que fosse para parar de se esconder atrás de mim e sair naquele instante. E quando o fiz, ele saiu, vestido com uma capa preta, como sempre ouvi. Quando vi o par de presas cutucando seus lábios vermelhos e malignos, sabia o que era. Depois disso, é a mesma velha história. Preparei minha lança, porém então meus olhos encontraram os seus e toda a força foi drenada de mim. Não que importasse muito, porque quando aquele rosto pálido se aproximou e senti uma respiração tão fria quanto o luar na base do meu pescoço, minha mente apenas ficou em branco. A próxima coisa que notei foi que era o amanhecer e que estava deitada na pradaria com um par de marcas de presas na minha garganta. É por isso que estive na base daquela colina todos os dias, de manhã até a noite, procurando por alguém como você.
Com sua emocionante história enfim concluída, Doris esticou-se de volta no sofá, exausta.
— E não tornou a se alimentar de você desde então?
— Sim. Embora continue o esperando acordada todas as noites com uma lança pronta.
Os olhos de D se estreitaram com sua tentativa de leviandade.
— Se estivéssemos lidando apenas com um Nobre faminto por sangue, ele viria todas as noites. Contudo, veja bem, quanto maior o interesse que eles têm em suas vítimas, maior o intervalo entre os ataques para que possam prolongar o prazer da alimentação. O fato de que já se passaram cinco dias é incrível. Parece que está extremamente apaixonado por você.
— Poupe-me dos malditos elogios! — Doris gritou. Não havia mais vestígios da mulher irascível que desafiou D para uma batalha no crepúsculo. A garota estava sentada ali, uma adorável menina de dezessete anos tremendo de medo.
Enquanto D a observava com olhos frios, acrescentou palavras que só fizeram os cabelos da nuca da jovem se arrepiarem.
— O intervalo médio entre ataques é de três a quatro dias. Mais de cinco é extremamente raro. Ele virá hoje à noite, sem dúvida. Pelo que posso dizer pelos seus ferimentos, é bem poderoso, como Nobreza da Fronteira. Antes, você comentou algo sobre ‘seu castelo’. Já sabe qual sua identidade, não é?
Doris fez um pequeno aceno.
— É o senhor desta região desde muito antes de haver qualquer aldeia de Ransylva. Seu nome é Conde Lee. Ouvi alguns dizerem que tem cem anos, enquanto outros dizem que tem dez mil.
— Dez mil anos, hein? Os poderes de um Nobre aumentam com o passar dos anos. Pode ser um adversário problemático. — disse D, embora seu tom não parecesse particularmente preocupado.
— Os poderes de um Nobre? Quer dizer coisas como o poder de provocar um vendaval com um aceno do braço, ou ser capaz de se transformar em um dragão de fogo?
Ignorando a pergunta de Doris, D disse.
— Há uma última coisa que preciso lhe perguntar. Como sua aldeia lida com aqueles que foram mordidos por vampiros?
O rosto da garota empalideceu em um instante.
Em muitos casos, aqueles que sentiram as presas malignas de um vampiro foram isolados em sua respectiva vila ou cidade enquanto arranjos eram feitos para destruir o culpado, no entanto se fossem incapazes de derrotar o vampiro, a vítima seria expulsa da cidade ou, no pior dos casos, eliminada. Esse era o costume porque um demônio noturno, enlouquecido de raiva por não ser capaz de se alimentar daquele que queria, atacaria qualquer um que pudesse colocar as mãos. Mais cidades e vilas do que qualquer um poderia contar foram dizimadas exatamente por esse motivo. Ransylva tinha políticas semelhantes em vigor. Essa foi a razão pela qual Doris não pediu ajuda a mais ninguém, mas procurou um Caçador de Vampiros em particular. Sua falha em confiar em seu irmão foi por medo de que sua conduta pudesse alertar os moradores se eles por acaso fossem à cidade. Se não tivesse um irmão mais novo para considerar, de fato já teria ido atrás do vampiro sozinha, ou se matado.
Vampiros lidavam com suas vítimas de duas maneiras. Ou drenavam todo o sangue de suas presas em uma alimentação e as deixavam um mero cadáver ou, por meio de alimentações repetidas, transformavam o indivíduo em um companheiro. O ponto chave no último não era o número de vezes que o vampiro se alimentava, e sim algo que D havia tocado antes: se o vampiro gostava ou não de sua vítima. Às vezes, uma pessoa se juntava a eles após uma única mordida, enquanto outras vezes podiam compartilhar o beijo de sangue por meses apenas para morrer no final. E nem era preciso dizer que aqueles transformados em vampiros tinham que suportar seu destino como demônios detestáveis, vagando todas as noites em busca de sangue humano quente, vivendo na escuridão eterna. Para Doris, e para todas as outras pessoas neste mundo, esse era o verdadeiro terror.
— Em todo lugar é a mesma coisa, não é? — D murmurou. — Demônios amaldiçoados, ghouls da escuridão, diabos loucos por sangue. Mordido uma vez, você é um deles. Bem, deixe-os dizer o que quiserem. Levante-se, por favor. — ele disse a Doris, que foi pega de surpresa pelo único comentário dirigido a ela. — Parece que o convidado que estávamos esperando chegou. Deixe-me ver o controle remoto da sua barreira eletromagnética.
— O quê? Já está aqui? Você acabou de dizer que estaria aqui depois da meia-noite.
— Também estou surpreso.
Entretanto D não pareceu nem um pouco surpreso.
Doris voltou do quarto com o controle remoto e o entregou a D.
Para evitar que todos os tipos de visitantes estranhos entrassem furtivamente na fazenda enquanto as duas crianças Lang estivessem fora, tinham que ter alguma maneira de erguer o campo de força do lado de fora. Adquirida de segunda mão em um mercado negro na Capital logo após a morte de seu pai, quatro anos atrás, a barreira era seu maior tesouro, exceto, é claro, nas raras ocasiões em que quebrava. Suas perdas para os espectros e bestas raivosas que vagavam pela noite eram muito menores do que as de outras casas na periferia; para ser mais exato, suas perdas eram quase inexistentes. Todavia a compra teve um preço. Depois que a compraram, ficaram com menos de um terço das economias de vida de seu pai.
— Como pretende enfrentá-lo? — Doris perguntou. Era uma pergunta que brotava do sangue de Caçadora que corria em suas veias. As técnicas de luta dos Caçadores de Vampiros, que eram raras até mesmo na Fronteira, eram consideradas arrepiantes e magníficas, mas quase ninguém as tinha testemunhado em primeira mão. A própria Doris só tinha ouvido falar a seu respeito em contos. E o jovem à sua frente agora era completamente diferente da imagem rústica de Caçador evocada por essas histórias.
— Você deveria ver por si mesma, e eu queria poder deixar, porém preciso que durma.
— O quê...?
A mão do jovem tocou o ombro direito de Doris, que estava tenso com inchaços musculares, contudo ainda retinha alguma delicadeza. Qualquer que fosse a técnica ou poder que agora empregava, assim que Doris percebeu a assustadora carga fria percorrendo seu corpo a partir de seu ombro, ela perdeu a consciência. No entanto pouco antes de fazê-lo, vislumbrou algo assustador na palma da mão esquerda de D, ou pelo menos acreditou que viu. Ela pensou ter visto algo pequeno, de uma cor e forma que não conseguia discernir, todavia o que quer que fosse, tinha olhos, nariz e boca, como uma espécie de rosto grotesco.
Aparentemente confiante na eficácia de suas ações, D nem se preocupou em verificar se Doris estava mesmo inconsciente antes de sair do quarto com sua espada sobre o ombro. A razão pela qual a colocou para dormir foi para impedi-la de interferir na batalha que estava prestes a começar. Não importa quão firme fosse sua determinação, qualquer um que tivesse sentido o beijo do vampiro uma vez não poderia deixar de obedecer aos comandos do demônio. Muitos eram os Caçadores que tinham sido baleados por trás ou tiveram seus corações perfurados pelas mesmas mulheres que procuravam salvar das presas amaldiçoadas. Para se proteger contra isso, os veteranos davam às vítimas um sedativo ou as confinavam em gaiolas de ferro portáteis. Entretanto a habilidade extraordinária que D tinha acabado de exibir com sua mão esquerda teria sido vista até mesmo pelo mais veterano dos Caçadores como impossível, presente apenas em sonhos produzidos pelas feiras folclóricas.
Uma vez no corredor, D abriu a porta do quarto de Dan. O garoto roncava pacificamente, alheio ao duelo mortal que estava prestes a acontecer. Fechando a porta sem fazer nenhum som, D deslizou pelo corredor da frente e desceu os degraus da varanda para a terra escura como breu. Nenhum vestígio do calor do meio-dia permaneceu agora. A grama verde balançava em uma brisa noturna fria e agradável.
Era por volta de setembro. Foi um grande crédito do Exército Revolucionário não ter destruído a dúzia de controladores climáticos enterrados sob os sete continentes. Se não durante o dia, pelo menos à noite os níveis mais confortáveis de calor e umidade para a Nobreza e os humanos eram mantidos durante todo o ano. Embora ainda houvesse tempestades violentas ou nevascas ocasionais escritas nos programas do controlador por alguns nobres que odeiam a uniformidade, para recriar as estações imprevisíveis de outrora.
Com um passo gracioso que era uma dança com a brisa, D passou por um portão na cerca e andou mais três metros antes de parar. Não demorou muito para que viesse das profundezas da escuridão, dos confins da planície, o som de cascos de cavalo e rodas de carroça se aproximando. Poderia ser que D os tivesse ouvido enquanto falava com a jovem naquele quarto distante?
Uma parelha de quatro cavalos e uma carruagem tão escura que parecia laqueada com a meia-noite apareceu ao luar e parou cerca de 5 metros à frente de D. As lindas bestas pretas preparadas que a puxavam eram provavelmente cavalos ciborgues.
Um homem com uma capa preta invernal estava sentado no poleiro do cocheiro, examinando D com olhos brilhantes. O chicote preto laqueado em sua mão direita refletia o luar. Somente pela luz da lua, D conseguia distinguir um toque de bestialidade em seu rosto e nas costas espessas de suas mãos.
O homem se apressou em descer do assento do cocheiro. Todo o seu corpo era como uma mola enrolada; até se movia como uma besta. Antes que pudesse alcançar a porta do passageiro, a maçaneta prateada girou e a porta se abriu por dentro. Um frio profundo e o fedor de sangue de repente envolveram a brisa refrescante. Quando D viu de relance a figura descendo da carruagem, o menor sinal de emoção surgiu em seus olhos.
— Uma mulher?
Seu deslumbrante cabelo dourado parecia que iria rastejar pelo chão atrás dela. Se Doris era a personificação de um girassol, então essa mulher só poderia ser comparada a uma flor da lua. Seu vestido branco como a neve de estilo medieval estava amarrado com firmeza em sua cintura, espalhando-se em curvas abundantes chegando ao chão. O vestido era sem dúvidas adorável, porém era a beleza pálida única da Nobreza que fazia a jovem parecer uma ilusão sobrenatural, brilhando como ela fazia como um sonho em uma chuva de luar. Contudo a ilusão cheirava a sangue. As chamas de um pesadelo crepitavam em seus olhos de lápis-lazúli, e seus lábios convidativos eram vermelhos como sangue enquanto brilhavam úmidos na visão noturna de D, trazendo à mente uma fome que não seria saciada por toda a eternidade. A fome de um vampiro.
Olhando para D, a jovem riu como um sino de prata.
— Você é algum tipo de guarda-costas? Contratar tal patife para proteção é justo o tipo de coisa que um humano miserável faria. Tendo ouvido do pai que a garota que mora aqui não é apenas de uma beleza inigualável pelos humanos dessas partes, como que seu sangue é tão delicioso quanto, vim vê-la pessoalmente. No entanto, como eu esperava o tempo todo, não há grande diferença entre essas pequenas pragas tolas e irritantes.
A horripilância tomou conta do rosto da garota. As presas peroladas que apareceram sem aviso nos cantos de seus lábios não escaparam à atenção de D.
— Primeiro farei um respingo sangrento de você, e então drenarei o sangue humilde dela até que não reste uma gota. Como já deve saber, o pai está inclinado a torná-la parte de nossa família, mas não ficarei parada enquanto o sangue da linhagem Lee é transmitido a uma inútil que se rebaixaria a um truque desse tipo. Vou expulsá-la da face da terra para os braços dos deuses negros do inferno. E você a acompanhará.
Enquanto falava, a jovem fez um movimento com sua mão esguia. Seu condutor deu um passo à frente. Intenção assassina e malevolência irradiavam de cada centímetro de seu ser como chamas lambendo o rosto de D.
Vocês, vermes humildes, esqueceram sua posição, seu semblante parecia dizer. Vocês são escória vira-casaca, esquecendo a dívida que têm com seus antigos mestres, rebelando-se contra eles com suas mentes e armas tortuosas. É aqui que aprenderá o erro de seus caminhos.
A transformação havia começado. O arranjo molecular de suas células mudou, e seu sistema nervoso se tornou o de uma fera selvagem nascida para correr pelo chão em grandes velocidades. Os quatro membros agarrados à terra começaram a assumir uma forma mais adequada a um animal inferior. Uma mandíbula prognata se formou e revelou fileiras de dentes afiados como navalhas saindo de uma boca em forma de lua crescente que dividia seu rosto de orelha a orelha. Pelos negros como azeviche brotavam sobre cada centímetro seu.
O condutor era um lobisomem, um dos monstros da noite ressuscitados das profundezas escuras da lenda medieval junto com os vampiros. D podia dizer apenas observando a transformação, que alguns podem até chamar de graciosa, que o condutor não era uma das falsificações geneticamente modificadas e ciberneticamente aprimoradas que os vampiros espalharam pelo mundo.
Um uivo gutural resplandecente com a alegria da matança dividiu o vazio sem palavras. Com os dois olhos reluzindo com um intenso brilho, o lobo vestindo capa invernal cambaleou para cima sobre as patas traseiras. Foi exatamente isso que fez do lobisomem um licantropo entre os licantropos, pois, apesar de sua forma de quatro patas, a velocidade e o poder destrutivo de um lobisomem eram maiores quando ficava ereto.
Talvez interpretando o fato de que o jovem ficou parado e não moveu um músculo desde sua chegada como se estivesse paralisado pelo medo, a besta negra fez um pequeno agachamento. Confiando todo o seu peso nas molas poderosas da parte inferior do corpo, saltou mais de quatro metros em um único salto.
Dois clarões mais brilhantes que o luar cortaram a escuridão.
D não se moveu. O lobisomem, caindo sobre D de cima com toda a intenção de afundar suas garras destruidoras de ferro em seu crânio, mudou de curso no ar. Seu corpo voou sobre a cabeça de D como se estivesse pronto para dar outro salto e pousou nos arbustos alguns metros atrás do Caçador.
Encenado completamente no ar, um salto como esse era uma manobra milagrosa possível apenas pela coordenação do poder dos pulmões, da coluna e da musculatura extremamente tenaz por uma fração de segundo, e era algo que apenas lobisomens podiam fazer. Até mesmo grupos de Caçadores de Lobisomens experientes por vezes eram vítimas de ataques como esse porque o ataque era muito mais terrível do que quaisquer rumores que pudessem ter ouvido, e não estavam preparados para enfrentar a coisa real. Essas criaturas demoníacas podiam atacar suas presas de ângulos e direções que eram supostos serem impossíveis no que diz respeito à dinâmica tridimensional, e o ataque era de um absoluto silêncio.
Todavia, gemidos de dor saíam da garganta da fera enquanto esta se agachava no mato. Sangue brilhante brotava entre os dedos pressionados contra seu flanco direito, encharcando a grama. Seus olhos, injetados de sangue com malícia e agonia, capturaram a lâmina brilhando com o luar refletido na mão direita de D enquanto o Caçador estava de frente para ela sem emitir qualquer som. Assim que o lobisomem estava pronto para cravar suas garras, D sacou a espada sobre o ombro com uma velocidade ímpia e a cravou no flanco do oponente.
— Impressionante. — disse um deles. Estranhamente, esse alguém era D, que tinha a impressão de ter dividido o torso do lobisomem. — Até agora, nunca tinha visto do que um verdadeiro lobisomem era capaz.
Sua voz baixa semeou as sementes de uma nova variedade de medo no coração da fera demoníaca. As pernas da fera podiam gerar explosões de velocidade de 580km/h... Quase metade da velocidade do som. Houve menos de um quinquagésimo de segundo entre o momento em que saltou e seu ataque a D, o que significava que o jovem tinha sido capaz de balançar sua espada e abrir sua barriga ainda mais rápido. Pior ainda, a ferida do lobisomem não fechava! Isso não seria tão incomum quando ele era humano, porém uma vez que assumiu a forma bestial, as células da carne de um lobisomem eram como organismos unicelulares, concedendo-o o poder regenerativo de uma hidra. Células criaram mais células, fechando feridas quase no mesmo instante. Contudo a lâmina que o lobisomem tinha acabado de provar tornou a regeneração impossível, embora talvez não fosse devido à lâmina, e sim à habilidade do jovem que a empunhava. Pele e tecido muscular que podiam rejeitar balas não estavam mostrando nenhum sinal de regeneração!
— O que há de errado com você, Garou? — a jovem gritou. — Na forma de lobo você deveria ser imparável! Não perca tempo brincando. Exijo que destrua esse humano agora!
Embora tenha ouvido sua senhora repreendendo-o, o lobisomem Garou não se moveu, em parte por causa do ferimento, todavia também por causa da habilidade divina do jovem com uma espada. O que de fato tocou a fonte do horror foi a vontade lúgubre de matar que jorrou de cada poro do jovem pouco antes que o lobisomem pudesse desencadear seu ataque mortal. Isso não veio de nada humano!
Ele é um desses? Um dampiro?
Garou enfim percebeu que havia encontrado um oponente de verdade.
— Seu guarda está ferido... — D disse em um suave tom, virando-se para a jovem. — Se não tornar a avançar contra mim de novo, poderá viver até uma idade avançada. Você também pode. Vá para casa e diga ao seu pai que um obstáculo perigoso surgiu. E que seria um tolo se atacasse esta fazenda outra vez.
— Cale-se! — a jovem gritou, seu lindo rosto se tornando o de uma banshee. — Eu sou Larmica, filha do Conde Magnus Lee, o governante de todo o distrito de Ransylva da Fronteira. Acha que posso ser superada por alguém como você e sua espada?
Antes que ela terminasse de falar, um raio de luz branca disparou em direção ao seu peito da mão esquerda de D. Na verdade, era uma agulha de 30 centímetros que havia tirado em algum momento e jogada mais rápido do que o olho nu poderia acompanhar. Era feita de madeira. Enquanto viajava naquela velocidade insondável, a agulha queimava com o atrito do ar, e a luz branca vinha daquelas chamas.
No entanto algo estranho aconteceu.
As chamas pararam na frente do peito de D. Não que a agulha que havia jogado tivesse simplesmente parado ali. No instante em que estava prestes a afundar no peito de Larmica, ela se virou e voltou, e D a parou com a mão nua. Ou para ser mais preciso, Larmica pegou a agulha com velocidade sobre-humana e a jogou de volta com a mesma rapidez. Uma pessoa comum nem teria visto sua mão se mover.
— Se o servo não é mais do que um servo, ainda assim o mestre é um mestre. Bem feito. — D murmurou, sem se importar com a agulha flamejante em sua mão ou com a forma como queimava sua carne nua. — Por essa demonstração de habilidade você ganhou meu nome. Eu sou o Caçador de Vampiros D. Lembre-se disso, se viver.
Enquanto falava, D correu para a jovem sem fazer barulho.
O terror invadiu a expressão de Larmica. Num piscar de olhos, a distância entre os dois se fechou para uma na qual estava a uma distância mínima da espada dele, e então...
— Awoooooooooh!
Um uivo feroz sacudiu o ar da noite, e um clarão de luz índigo disparou do poleiro do cocheiro na carruagem. D mergulhou para o lado para desviar, só conseguindo escapar do feixe porque sua audição sobre-humana havia discernido o som do canhão laser no poleiro girando para atingi-lo. O feixe perfurou a bainha de seu sobretudo, acendendo-o em chamas azuis claras. Presumivelmente, o canhão estava equipado com circuitos de reconhecimento de voz e um sistema eletrônico de mira que respondia aos uivos de Garou. Evitando os flashes azuis que voavam com precisão infalível para onde quer que tivesse ido para se esquivar do último, D não teve escolha a não ser continuar girando no ar.
— Minha dama, por aqui!
Ele ouviu a voz de Garou no assento do condutor. Houve o som de uma porta se fechando. Enquanto D tentava persegui-lo, outra explosão do canhão laser deteve seu avanço, e a carruagem girou e foi engolida pela escuridão.
— Eu me acerto com você outro dia, miserável, marque minhas palavras!
— Você não vai esquecer tão cedo a ira da Nobreza!
Quer estivesse satisfeito por ter afastado o inimigo ou perturbado por não ter conseguido dar um fim a vampira, D não tinha nenhuma emoção em seu rosto enquanto se levantava inexpressivo dos arbustos, as palavras de despedida sufocadas pela malícia da dupla o circulando indefinidamente.
Notas do Tradutor:
1. Bracelete, corrente ou colar de metal.
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