Capítulo 16: A Flecha Branca
— Não é justo! — Simon soluçou pela centésima vez, golpeando o chão molhado. Folhas grudaram em seus dedos avermelhados, que já estavam insensíveis. — Não é justo! — murmurou, encolhendo-se em posição fetal. O sol já estava alto havia uma hora, mas a luz tênue não trazia calor. Simon estremeceu e chorou.
E não era justo... Não era nada justo. O que havia feito para estar deitado úmido, miserável e sem teto na floresta de Aldheorte enquanto outros dormiam em camas quentinhas, ou apenas acordados para comer pão, leite e com roupas secas? Por que deveria ser caçado e perseguido como um animal imundo? Tentara fazer o que era certo, ajudar o amigo e o Príncipe, e isso o tornara um pária faminto.
“Porém Morgenes sofreu muito mais, não é?” uma parte sua apontou com desprezo. “O pobre doutor poderia trocar de muito bom grado de lugar com você.”
Contudo ainda que fosse o caso, aquela não era a questão. O doutor Morgenes pelo menos tinha alguma ideia do que estava envolvido, do que poderia acontecer. Ele próprio fora, pensou com desgosto, tão inocente e estúpido quanto um rato que sai de casa para brincar de pega-pega com o gato.
“Por que Deus me odeia tanto?” perguntou-se Simon, fungando. Como poderia Jesuris Aedon, que os sacerdotes diziam zelar por todos, tê-lo deixado sofrer e morrer daquele jeito? E voltou a irromper em prantos.
***
Esfregando os olhos algum tempo depois, perguntou-se quanto tempo estivera ali deitado, olhando para o nada. Levantou-se, afastando-se da árvore que o protegia para sacudir a vida de volta às mãos e aos pés. Voltou para a árvore tempo suficiente para esvaziar a bexiga e então caminhou, de má vontade, até o pequeno riacho para beber. A dor implacável nos joelhos, costas e pescoço o repreendia a cada passo.
“Que todos vão para o inferno. E maldita seja essa odiosa floresta. E Deus também, aliás.”
Seus temerosos olhos se ergueram do seu punhado de água fria, contudo sua blasfêmia silenciosa ficou impune.
Quando terminou de beber, se dirigiu rio acima por uma curta distância até um local onde o riacho desaguava em um lago, e as águas turbulentas se acalmavam. Agachado, fitando seu reflexo marejado de lágrimas, notou uma resistência na cintura que dificultava agachar-se sem se firmar com as mãos.
“O manuscrito do doutor!” recordou.
Meio que se levantou, puxando a massa quente e flexível de entre as calças e a frente da camisa. Seu cinto havia aberto um vinco que cobria todo o embrulho. Ele as carregara por tanto tempo que as páginas se moldavam à curva de sua barriga como uma armadura; em sua mão, elas jaziam arqueadas como uma vela ao vento. A página de cima estava manchada e coberta de sujeira, no entanto Simon reconheceu a letra pequena e intrincada do doutor, ele estivera usando a fina armadura das palavras de Morgenes. Sentiu uma pontada repentina e intensa, como se estivesse faminto, e colocou os papéis de lado com delicadeza, voltando o olhar para o remanso.
Levou um momento para separar seu próprio reflexo das faixas e manchas de sombra projetadas na superfície da água. A luz estava atrás dele; sua imagem era em grande parte uma silhueta, uma figura escura com apenas a sugestão de traços ao longo da têmpora, bochecha e maxilar iluminados. Virando a cabeça para capturar o sol, olhou pelo canto do olho e viu um animal caçado espelhado na água, a orelha inclinada como se estivesse atento a alguma perseguição, o pelo uma emaranhada sebe de tufos, o pescoço angulado de uma forma que não demonstrava nenhum tipo civilização, mas vigilância e medo. Pegou o manuscrito e caminhou pela margem do riacho.
“Estou completamente sozinho. Ninguém mais cuidará de mim. Não, nunca o fizeram.” pensou sentir o coração se partindo dentro do peito.
Depois de procurar por alguns minutos, encontrou um raio de sol e se acomodou para secar as lágrimas e pensar. Parecia óbvio, enquanto ouvia o eco dos pássaros na floresta silenciosa, que precisava encontrar roupas mais quentes se fosse passar as noites ao ar livre, e isso certamente teria de ser feito até se afastar mais de Hayholt.
Também precisava decidir para onde iria.
Começou a folhear, distraído, os papéis de Morgenes, cada um repleto de palavras. Palavras... Como alguém conseguia pensar em tantas palavras ao mesmo tempo, quanto mais escrevê-las? Sua cabeça doía só de imaginar. E de que serviam, pensou, com o lábio tremendo de amargura, quando se estava com frio e fome... Ou quando Pryrates estava à porta? Ele separou duas páginas. A de baixo rasgou, e sentiu como se tivesse insultado um amigo sem querer. Manteve o olhar fixo por um instante, traçando solenemente a caligrafia familiar com o dedo, depois ergueu-a para captar a luz, semicerrando os olhos para ler.
“Resulta estranho, então, pensar como aqueles que escreveram as canções e histórias que entretinham a corte reluzente de John fizeram dele, em um esforço para engrandecer sua vida, menos do que de fato era.”
Lendo-a pela primeira vez, quebrando a cabeça palavra por palavra, não conseguiu decifrar nada; porém, ao relê-la, as cadências da fala de Morgenes surgiram. Quase sorriu, esquecendo por um instante sua situação horrível. Ainda lhe fazia pouco sentido, contudo reconheceu a voz do amigo.
“Considere, por exemplo...” continuava. “Sua chegada à Erkynlandia, vindo da ilha de Warinsten. Os cantores de baladas dizem que Deus o convocou para matar o dragão Shurakai; que tocou a costa em Grenefod com sua espada Cravo Brilhante na mão, com a mente voltada apenas para esta grande tarefa.”
“Embora seja possível que um Deus benevolente o tenha chamado para libertar a terra da fera temível, ainda não se sabe por que Deus permitiu que o referido dragão devastasse o país por longos anos antes de que chegasse seu nêmesis. E, claro, aqueles que o conheceram naqueles dias se lembravam de que ele deixou Warinsten filho de um fazendeiro sem espada, e chegou às nossas costas nas mesmas condições; nem sequer pensou no Verme Vermelho até passar a maior parte de um ano em nossa Erkynlandia...”
Resultou bastante reconfortante ouvir a voz de Morgenes outra vez, mesmo que fosse apenas em sua própria cabeça, contudo estava intrigado com a passagem. Morgenes estaria tentando dizer que o Preste John não havia matado o Dragão Vermelho, ou apenas que não havia sido escolhido por Deus para o papel? Se não havia sido escolhido pelo Senhor Jesuris no céu, como havia matado a besta? O povo de Erkynlandia não dizia que ele era o rei ungido por Deus?
Enquanto pensava, um vento frio soprou por entre as árvores e arrepiou seus braços.
“Aedon, que se dane, preciso encontrar uma capa, ou algo quente para vestir.” pensou. “E decidir para onde vou, em vez de ficar aqui sentado, devaneando como um idiota sobre escritos antigos.”
Parecia óbvio agora que seu plano do dia anterior, o de se cobrir com uma fina camada de anonimato, tornando-se um ajudante de cozinha ou um limpador de chaminés em algum albergue rural, era uma ideia impossível. Se os dois guardas dos quais havia escapado... O problema não era tê-lo conhecido: se não o tivessem reconhecido, alguém eventualmente o faria. Tinha certeza de que os soldados de Elias já estavam vasculhando o campo procurando-o. Não era apenas um servo fugitivo, era um criminoso, um criminoso terrível. Várias mortes já haviam sido pagas pela fuga de Josua; não haveria misericórdia para Simon se caísse nas mãos da Guarda Erkyna.
Como poderia escapar? Para onde iria? Sentiu o pânico voltar a invadi-lo e tentou contê-lo. O último desejo de Morgenes fora que seguisse Josua até Naglimund. Parecia agora que esse era o único caminho útil. Se o Príncipe tivesse escapado com sucesso, certamente o acolheria. Caso contrário, sem dúvida os vassalos de Josua poderiam trocar um refúgio por notícias de seu senhor. Ainda assim, era um caminho terrivelmente longo até Naglimund; Simon conhecia a rota e a distância apenas de reputação, mas ninguém a chamaria de curta. Se continuasse a seguir a Velha Estrada da Floresta para oeste, em algum ponto esta cruzaria a Estrada Wealdhelm, que seguia para o norte ao longo da base das colinas que lhe deram o nome. Se conseguisse encontrar o caminho de Wealdhelm, pelo menos estaria indo na direção certa.
Com uma tira arrancada da bainha da camisa, amarrou os papéis, enrolando-os na forma de cilindro e enrolando o pano em volta dele, amarrando-o com uma torção cuidadosa das pontas. Percebeu que havia esquecido uma página, que estava de lado e, ao pegá-la, viu que era a mesma manchada pelo próprio suor. No borrão de letras arruinadas, uma frase escapara; as palavras saltaram aos seus olhos.
“Se ele era tocado pela divindade, isso era mais evidente em suas idas e vindas, em encontrar o lugar certo para estar na hora mais adequada e lucrar com isso...”
Não era bem uma adivinhação ou uma profecia, porém o fortaleceu um pouco e somou forças a sua determinação. Iria para o norte... Para o norte, para Naglimund.
***
Uma jornada espinhosa, dolorosa e miserável de um dia, sob o abrigo da Velha Estrada da Floresta, foi salva em parte por uma descoberta fortuita. Enquanto se movia pelo mato, contornando as cabanas ocasionais que se agachavam a uma distância considerável da estrada, vislumbrou, através da fresta na cobertura florestal, um tesouro inestimável: a roupa lavada de alguém sem cuidados. Enquanto se arrastava em direção à árvore, cujos galhos estavam enfeitados com roupas úmidas e um cobertor velho e encharcado, manteve o olhar fixo na cabana surrada, coberta de palha, que ficava a poucos passos de distância. Seu coração batia acelerado enquanto puxava para baixo uma capa de lã tão pesada de umidade que cambaleou quando ela deslizou livre para seus braços. Nenhum alarme foi dado na cabana; na verdade, não parecia haver ninguém por perto. Por algum motivo, isso o fez se sentir ainda pior em relação ao roubo. Enquanto se arrastava de volta para as árvores emaranhadas com seu fardo, viu novamente em sua mente uma placa de madeira rudimentar batendo contra um peito sem fôlego.
***
A verdade era que Simon em pouco tempo se deu conta que viver a vida de fora da lei não se parecia em nada com as histórias de Jack Mundwode, o Bandido, que Shem lhe contara. Em suas imaginações, a Floresta de Aldheorte era uma espécie de salão alto e infinito, com piso de turfa lisa e altos pilares de troncos de árvores sustentando um teto distante de folhas e céu azul, um pavilhão arejado onde cavaleiros como Sir Tallistro de Perdruin ou o grande Camaris cavalgavam cavalos de guerra empinados e livravam damas enfeitiçadas de destinos horríveis. Preso em uma realidade inconformista, quase malévola, Simon descobriu que as árvores da orla da floresta se amontoavam, galhos entrelaçados como cobras emaranhadas. A própria vegetação rasteira era um obstáculo, um campo infinito e curvo de silvas e troncos caídos que jaziam quase invisíveis sob musgo e folhas mofadas.
Naqueles primeiros dias, quando as vezes se encontrava em uma clareira e conseguia caminhar sem obstáculos por um curto período, o som de seus próprios passos tamborilando no solo o fazia sentir-se exposto. Ele se viu atravessando com pressa os vales sob a luz do sol oblíqua, rezando pela segurança da vegetação rasteira outra vez. Essa falta de coragem o enfurecia tanto que se obrigava a atravessar aquelas clareiras lentamente. Às vezes, chegava a cantar canções corajosas, ouvindo o eco como se o som de sua voz vacilando e morrendo no abafamento das árvores fosse a coisa mais natural do mundo, contudo, uma vez que retornava aos arbustos espinhosos, raramente conseguia se lembrar do que havia cantado.
Embora as memórias de sua vida em Hayholt ainda preenchessem sua mente, elas haviam se tornado fragmentos de lembranças que pareciam cada vez mais distantes e irreais, substituídas por uma névoa crescente de raiva, amargura e desespero. Seu lar e sua felicidade haviam sido roubados. A vida em Hayholt tinha sido algo grandioso e tranquilo: as pessoas gentis, as acomodações maravilhosamente confortáveis. Agora, atravessava a floresta tortuosa hora após hora desolada, imerso em miséria e autopiedade. Sentia seu antigo eu desaparecer, e cada vez mais seus pensamentos, acordado, giravam em torno de apenas duas coisas: seguir em frente e comer.
A princípio, ponderou por um longo tempo se deveria pegar a estrada aberta para acelerar o passo e correr o risco de ser descoberto, ou tentar segui-la da segurança da floresta. A última opção pareceu a melhor ideia, mas logo descobriu que as duas, estrada e orla da floresta, divergiam amplamente em certos pontos, e no denso emaranhado de árvores, muitas vezes era assustadoramente difícil encontrar a estrada de novo. Simon também percebeu, com doloroso constrangimento, que não tinha a menor ideia de como fazer uma fogueira, algo em que nunca havia pensado enquanto ouvia Shem descrever o divertido Mundwode e seus companheiros bandidos banqueteando-se com carne de veado assada em sua mesa na floresta. Sem uma tocha para iluminar seu caminho, parecia que a única coisa possível a fazer era seguir a estrada à noite, quando o luar permitisse. Então dormiria à luz do dia e usaria as horas restantes de sol para caminhar penosamente pela floresta.
Sem tocha significava sem fogueira para cozinhar, e este foi, de certa forma, o golpe mais duro de todos. De vez em quando, encontrava ninhos de ovos salpicados depositados pela mãe perdiz em esconderijos de grama emaranhada. Estes forneciam algum alimento, embora era difícil sugar as gemas pegajosas e frias sem pensar nas delícias quentes e perfumadas da cozinha de Judith e refletir com amargura sobre as manhãs em que estivera com tanta pressa para ver Morgenes ou sair para o campo do torneio que deixara grandes pedaços de pão de manteiga e pão com mel intocados em seu prato. Agora, de repente, a ideia de uma crosta amanteigada era um sonho de riqueza.
Incapaz de caçar, sabendo pouco ou nada sobre quais plantas selvagens poderiam ser comidas sem perigo, Simon devia sua sobrevivência aos roubos nas hortas dos pescadores locais. Mantendo um olhar atento para cães ou moradores furiosos, descia do abrigo da floresta para vasculhar as escassas hortas, arrancando cenouras e cebolas ou colhendo maçãs dos galhos mais baixos, porém mesmo esses escassos bens eram raros e ocasionais. Muitas vezes, enquanto caminhava, as dores da fome eram tão intensas que gritava de raiva, chutando com força os arbustos emaranhados. Certa vez, chutou com tanta força e gritou tão alto que, ao cair de cara no mato, não conseguiu se levantar por um longo tempo. Ficou deitado, ouvindo os ecos de seus gritos desaparecerem, e pensou que morreria.
Não, a vida na floresta não era nem um décimo tão gloriosa quanto imaginara naquelas tardes longínquas em Hayholt, agachado nos estábulos, cheirando feno e couro de arreios, ouvindo as histórias de Shem. A poderosa e velha floresta era uma anfitriã sombria e avarenta, ciosa de distribuir conforto a estranhos. Escondido em arbustos espinhosos para dormir durante as horas de sol, abrindo caminho úmido e trêmulo pela escuridão sob a lua entrelaçada pelas árvores, ou correndo furtivamente pelas hortas com sua capa larga e flácida, Simon sabia que era mais um coelho do que um garoto.
***
Apesar de carregar as páginas enroladas da vida de John escrita por Morgenes aonde quer que fosse, agarrando-as como um bastão de ofício benzido por um sacerdote, com o passar dos dias ele as lia cada vez menos. No finalzinho do dia, entre uma refeição patética... Se é que havia alguma, e a escuridão assustadora e cerrada do mundo lá fora, abria o embrulho e lia parte de uma página, contudo a cada dia a sensação disso parecia mais difícil de compreender. Uma página, na qual os nomes de John, Eahlstan, o Rei Pescador, e o dragão Shurakai se destacavam, chamou sua atenção como uma efemérida, no entanto após lê-la quatro vezes, com dificuldade, percebeu que não fazia mais sentido para ele do que as linhas do ano em um pedaço de madeira. Em sua quinta tarde na floresta, apenas se sentou, chorando baixinho, com as páginas abertas no colo. Acariciou distraidamente o pergaminho macio, como certa vez arranhara o gato da cozinha, incontáveis anos antes, em um cômodo quente e iluminado que cheirava a cebola e canela.
***
Uma semana e um dia depois de deixar o Dragão e o Pescador, passou a uma curta distância de um povoado chamado Sistan, um assentamento apenas um pouco maior que Flett. As chaminés gêmeas de barro do restaurante de Sistan fumegavam, mas a estrada estava vazia, o sol brilhando. Simon espiou da encosta de uma colina, do meio do aglomerado de bétulas prateadas, e a lembrança de sua última refeição quente o atingiu como um golpe físico, enfraquecendo seus joelhos a ponto de quase cair. Aquela noite há muito perdida, apesar de seu fim, parecia quase a descrição que o Dr. Morgenes fizera do paraíso pagão dos antigos rimmerios: bebedeira e histórias eternas; folia sem fim.
Sorrateiro, desceu a colina em direção ao restaurante silencioso, com as mãos trêmulas, fazendo planos mirabolantes de roubar uma torta de carne de uma janela desprotegida ou entrar escondido por uma porta dos fundos para saquear a cozinha. Já estava fora das árvores e na metade da encosta quando, de repente, percebeu o que estava fazendo: saindo da mata ao meio-dia sem sombras, um animal doente e febril que havia perdido seus instintos de autoproteção. Sentindo-se subitamente nu, apesar de sua capa de lã salpicada de espinheiros, congelou no lugar, então girou e se afastou, de volta às bétulas esguias como cisnes. Agora, até elas pareciam expostas demais; xingando e soluçando, escalou as sombras mais densas, deixando que a velha floresta o rodeasse como um espesso manto.
***
Cinco dias a oeste de Sistan, o jovem sujo e faminto se viu agachado em outra encosta, espiando lá embaixo, em um vale na floresta, uma cabana rústica de madeira partida. Tinha certeza... Tão certa quanto podia estar com seus pensamentos tão lamentavelmente dispersos e fragmentados... De que mais um dia sem comida de verdade ou mais uma noite solitária passada na floresta fria e indiferente o deixariam real e finalmente perturbado: se tornaria a fera que cada vez mais se sentia ser. Seus pensamentos estavam se tornando imundos e brutos: comida, esconderijos escuros, caminhadas cansativas pela floresta, essas eram suas preocupações avassaladoras. Era cada vez mais difícil se lembrar do castelo, teria sido quente lá? Teriam falado com ele? Quando um galho perfurou sua túnica e arranhou suas costelas no dia anterior, apenas conseguiu rosnar e se debater, como uma fera!
“Alguém... Alguém mora aqui...”
A casa do lenhador tinha um caminho na frente ladeado por pedras bem organizadas. Uma pilha de madeira cortada ao meio aninhava-se sob o beiral, encostada na parede lateral. Com certeza, raciocinou, fungando baixinho, alguém ali teria pena dele se fosse até a porta e pedisse um pouco de comida.
“Estou com tanta fome. Não é justo. Não está certo! Alguém precisa me alimentar... Alguém...”
Desceu devagar a colina com as pernas duras, a boca abrindo e fechando. Uma lembrança vacilante das normas sociais lhe dizia que não devia assustar aquelas pessoas rústicas, aqueles silvicultores desconfiados em seu oco arborizado. Assim, manteve as palmas das mãos vazias à sua frente enquanto caminhava, os dedos pálidos bem separados numa silenciosa demonstração de inofensividade.
A cabana estava vazia, ou então os moradores não respondiam às suas batidas doloridas. O garoto caminhou ao redor da pequena cabana, arrastando as pontas dos dedos pela madeira áspera. A única janela estava fechada com uma tábua larga. Tornou a bater, com mais força; apenas ecos ocos responderam.
Ao se agachar sob a janela fechada com tábuas, perguntando-se desesperadamente se conseguiria abri-la com um pedaço de lenha, um farfalhar e estalar vindo do conjunto de árvores à sua frente o fez se endireitar tão rápido que sua visão se estreitou por um momento para um núcleo de luz cercado pela escuridão; ele vacilou, sentindo-se enjoado. A cerca da árvore se projetou para fora como se tivesse sido atingida por uma mão enorme, e então se retraiu com um tremor. Um momento depois, o silêncio foi outra vez interrompido, desta vez por um chiado estranho e staccato. O barulho foi transmutado em um fluxo rápido de palavras, em nenhuma língua que Simon conhecesse, porém ainda assim palavras. Após um instante de percussão, a clareira ficou silenciosa de novo.
Simon estava paralisado; não conseguia se mover. O que deveria fazer? Talvez o morador tivesse sido atacado por um animal a caminho de casa... Simon poderia ajudá-lo... Então teriam que lhe dar comida. Contudo como poderia ajudar? Mal conseguia andar. E se fosse uma fera, apenas uma fera... E se tivesse apenas imaginado ouvir palavras naquele abrupto borrifo de som?
E se fosse algo pior? Os guardas do Rei com espadas afiadas e brilhantes, ou uma bruxa esguia e faminta, de cabelos brancos? Talvez fosse o próprio Diabo, com vestes vermelho-brasas e olhos de beladona?
Onde encontrou a coragem, até mesmo a força, para desdobrar seus joelhos rígidos e caminhar em direção às árvores, Simon não sabia dizer. Se não se sentisse tão doente e tão desesperado, talvez não tivesse... No entanto estava doente, faminto, tão sujo e solitário quanto um chacal de Nascadu. Apertando a capa em volta do peito, segurando o rolo com os escritos de Morgenes à sua frente, mancou em direção ao bosque.
***
Nas árvores, a luz do sol caía irregularmente, filtrada por uma peneira de folhas primaveris, pontilhando o chão da floresta como uma dispersão de pedaços de linho. O ar parecia tenso como se a floresta contivesse a respiração. Por um momento, não viu nada além de formas escuras de árvores e lascas de luz diurna penetrante. Em um ponto, os raios de luz oscilavam irregularmente; percebeu um momento depois que brilhavam sobre uma figura que se debatia. Ao dar um passo à frente, as folhas sussurraram sob seus pés, e com esse som a luta cessou. A coisa pendurada, balançava a quase um metro do chão esponjoso, ergueu a cabeça e o encarou. Tinha o rosto de um homem, mas os implacáveis olhos topázios de um gato.
Simon saltou para trás, com o coração disparado no peito; estendeu as mãos, os dedos bem abertos como se quisesse bloquear a visão daquele bizarro ser pendurado. Fosse o que fosse ou quem fosse, não se parecia com nenhum homem que Simon já tivesse visto. Mesmo assim, havia algo dolorosamente familiar nele, como se visse um sonho meio esquecido... Porém muitos dos sonhos de Simon agora eram ruins. Que aparição estranha! Embora preso numa armadilha cruel, preso pela cintura e pelos cotovelos por um laço de corda preta serpenteante e pendurado num galho flutuante fora do alcance da terra, este prisioneiro parecia feroz, inabalável: uma raposa em uma árvore que morreria com os dentes na garganta de um cão de caça.
Se era um homem, era um homem muito esguio. Seu rosto de bochechas altas e ossos finos lembrou Simon por um instante, um momento terrivelmente frio, das criaturas vestidas de preto em Thisterborg, contudo onde elas eram pálidas, de pele branca como peixe-cego, esta era castanho-dourada como carvalho polido.
Tentando ver melhor na penumbra, Simon deu um passo à frente; o prisioneiro estreitou os olhos, depois abriu os lábios, arreganhando os dentes num silvo felino. Algo na maneira como fez aquilo, algo desumano na maneira como seu rosto quase humano se movia, disse a Simon em um instante que aquele não era um homem preso ali como uma doninha... Era algo diferente...
Simon se aproximara mais do que o prudente, e enquanto fitava os olhos salpicados de âmbar, o prisioneiro atacou, atingindo as costelas do jovem com seus pés calçados em botas de pano. Apesar de ter visto o movimento momentâneo para trás e antecipado o ataque, Simon ainda recebeu um golpe doloroso no flanco, tão rápido foi o movimento do prisioneiro. O garoto cambaleou para trás, encarando seu agressor, que em resposta lançou um olhar horrível.
Enquanto encarava o estranho do outro lado a uma distância da altura de um homem, Simon observou os músculos um tanto anormais abrirem a boca em um sorriso de escárnio, e o sitha... Pois percebera de repente, como se alguém lhe tivesse dito, que aquela criatura pendurada era exatamente isso... O sitha cuspiu uma única palavra estranha na língua ocidental de Simon.
— Covarde!
Simon ficou tão irritado com aquilo que quase avançou, apesar da fome, do medo e dos membros doloridos... Até perceber que era justo o que a provocação com sotaque estranho do sitha pretendia realizar. Reprimindo a dor das costelas chutadas, o garoto cruzou as mãos sobre o peito e encarou o homem sitha preso; teve a triste satisfação de ver o que tinha certeza ser uma contorção de frustração.
O Belo, como Raquel sempre se referia supersticiosamente à raça, usava um manto estranho e macio e calças de um material marrom escorregadio, apenas um tom mais escuro que sua pele. O cinto e os ornamentos de pedra verde brilhante contrastavam de forma maravilhosa com seu cabelo azul-lavanda como urze-da-montanha, preso para trás, rente à cabeça por um anel de osso, pendurado em um rabo de cavalo atrás de uma orelha. Parecia apenas um pouco mais baixo, embora muito mais magro, do que Simon... No entanto já fazia dias que o jovem não se via em nenhum reflexo além de poças escuras da floresta; talvez agora também parecesse tão magro e selvagem. Todavia ainda assim, seguia havendo diferenças, coisas não definíveis: movimentos de cabeça e pescoço semelhantes aos de pássaros, uma fluidez estranha no giro das articulações, uma aura de poder e controle perceptível mesmo enquanto seu possuidor se pendurava como um animal na mais rudimentar das armadilhas. Este sitha, este assombrador de sonhos, era diferente de tudo que Simon conhecera. Era aterrorizante e emocionante... Era alienígena.
— Não... Não quero te machucar. — disse Simon por fim, e percebeu que falava como se fosse uma criança. — Eu não armei a armadilha.
O sitha continuou a encará-lo com olhos ardentes e sinistros.
“Que dor terrível ele deve estar escondendo.” Simon maravilhou-se. “Seus braços estão tão puxados para cima que... Que se fosse eu estaria gritando!”
Projetando-se acima do ombro esquerdo do prisioneiro, havia uma aljava, vazia, exceto por duas flechas. Várias outras flechas e um arco de madeira fina e escura jaziam espalhados na grama sob seus pés balançando.
— Se eu tentar te ajudar, promete não me machucar? — perguntou Simon, formulando as palavras devagar. — Também estou com muita fome. — acrescentou, sem muita convicção.
O sitha não disse nada, mas quando Simon deu mais um passo, ele dobrou as pernas à frente para chutar; o jovem recuou.
— Que se dane! — gritou Simon. — Só queria te ajudar! — porém por que ele fez isso? Por que deixar o lobo sair do poço? — Você precisa... — começou a dizer, contudo o resto de suas palavras foi abafado quando uma grande forma escura surgiu sibilando e crepitando das árvores em direção a eles.
— Ah! Aqui está, aqui está... — disse uma voz grave. Um homem, barbudo e sujo, entrou na pequena clareira. Suas roupas eram pesadas e muito remendadas: em sua mão, balançava um machado.
— Agora vai ver... — o homem parou quando viu Simon encolhido contra uma árvore. — Vem aqui! — rosnou. — Quem é você? O que está fazendo?
Simon olhou para a lâmina do machado esburacada.
— Sou... — começou a dizer. — Sou apenas um viajante... Ouvi um barulho aqui nas árvores... — sua mão acenou em direção ao estranho. — Encontrei-o aqui, nesta... Armadilha.
— Minha armadilha! — sorriu o lenhador. — Minha maldita armadilha... E lá está ele também.
Virando as costas para Simon, o homem lançou um olhar penetrante ao sitha pendurado.
— Prometi que impediria que eles se esgueirassem, espionassem e azedassem o leite, e foi o que fiz.
Estendendo a mão, empurrou o ombro do prisioneiro, balançando-o indefeso para frente e para trás num arco lento. O sitha sibilou, no entanto foi um som impotente. O lenhador riu.
— Pela Árvore Sagrada, ainda está disposto a lutar. Vou te dar o que merece.
— O que... O que vai fazer com ele?
— O que acha, garoto? O que acha que Deus quer que façamos com espíritos, diabinhos e demônios quando os pegarmos? Mandá-los de volta para o inferno com meu bom machado, é claro.
O prisioneiro parou lentamente de balançar, girando em um círculo preguiçoso na ponta da corda preta. Seus olhos estavam baixos, seu corpo mole.
— Matá-lo? — inquiriu Simon, doente e fraco como estava, ainda sentia uma onda fria de choque. Tentou organizar seus pensamentos dispersos. — Você vai... Mas não pode! Não pode! Ele é... É um...
— O que não é, é uma criatura natural, pode ter certeza! Saia daqui, forasteiro. Está no meu pedaço de jardim, por assim dizer, e não tem motivo para estar. Sei o que essas criaturas estão aprontando.
O lenhador deu as costas para Simon com desprezo e se moveu em direção ao sitha, o machado erguido como se fosse rachar madeira. Esta madeira, porém, de repente desperta, tornou-se uma fera que se debatia, chutava e rosnava, lutando por sua vida. O primeiro golpe foi em vão, raspando a bochecha ossuda e abrindo um sulco irregular na manga da estranha e brilhante vestimenta. Uma faixa de sangue, de aparência humana, escorreu pelo queixo esguio e pescoço. O homem tornou a avançar.
Simon caiu de joelhos, procurando algo para interromper aquela luta medonha, para interromper os grunhidos e xingamentos do homem, e o rosnado áspero do prisioneiro sitiado que castigava seus ouvidos. Tateando, encontrou o arco, entretanto era ainda mais leve do que parecia, como se feito de juncos do pântano. Um instante depois, sua mão fechou-se sobre uma pedra semienterrada. Ele a empurrou, e ela se soltou do solo aderente. Segurou-a acima da cabeça.
— Pare! — gritou. — Deixe-o em paz!
Nenhum dos combatentes lhe deu a mínima atenção. O lenhador agora estava à distância de um braço, golpeando seu alvo em espiral, desferindo apenas golpes de raspão, todavia continuando a derramar sangue. O peito magro do sitha arfava como um fole; ele enfraquecia rapidamente.
Simon não aguentou mais aquele espetáculo cruel. Libertando o uivo que se acumulara dentro dele durante todos os dias intermináveis e aterrorizantes de seu exílio, saltou para a frente, cruzando a pequena clareira num salto para acertar a pedra na nuca do lenhador. Um estalo surdo reverberou pelas árvores; o homem pareceu ficar sem ossos em um instante. Seu corpo caiu pesadamente para a frente, de joelhos e depois sobre o rosto, uma onda de rubor subindo por seus cabelos emaranhados.
Olhando para os destroços ensanguentados, Simon sentiu suas entranhas se contorcerem; caiu de joelhos, vomitando, expelindo apenas um fio azedo de saliva. Pressionou a cabeça tonta contra o chão úmido e sentiu a floresta balançar e girar ao seu redor.
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Quando conseguiu, levantou-se e virou-se para o homem sitha, que seguia balançando silenciosamente na forca. A túnica serpenteante estava salpicada de faixas de sangue, e os olhos selvagens estavam turvos, como se uma cortina interna tivesse se aberto para bloquear a luz interior. Tão hesitante quanto um sonâmbulo, Simon pegou o machado caído e traçou a corda esticada do prisioneiro até onde ela se enrolava em um galho alto da árvore... Um galho alto demais para alcançar. Simon, entorpecido demais pelo medo, esfregou o fio da lâmina rachada contra o nó atrás das costas do sitha. O Belo estremeceu quando o laço se apertou mais, todavia não emitiu nenhum som.
Após um longo momento de raspagem e fricção, o nó escorregadio se desfez. O sitha caiu no chão, com as pernas cedendo, e tombou para a frente sobre o lenhador imóvel. Rolou para longe do corpo mudo em seguida, como se tivesse sido queimado, e começou a recolher suas flechas espalhadas. Segurando-as como um buquê de flores de caule longo, pegou seu arco na outra mão e parou para encarar Simon. Seus olhos frios brilharam, parando as palavras na boca de Simon. Por um instante, o sitha, com os ferimentos esquecidos ou ignorados, permaneceu imóvel e tenso como um cervo assustado; então, se foi, um clarão marrom e verde que desapareceu entre as árvores, deixando Simon boquiaberto e abandonado.
A luz do sol manchada ainda não havia terminado de ondular nas folhas por onde o sitha passara quando Simon ouviu um zumbido como o de um inseto furioso e sentiu uma sombra passar rapidamente por seu rosto. Uma flecha se destacou de um tronco de árvore ao seu lado, tremendo gradualmente de volta à visibilidade a menos de um braço de distância de sua cabeça. Ele a encarou, sem entender, imaginando quando a próxima o atingiria. Era uma flecha branca, com a haste e as penas brilhantes como a asa de uma gaivota. Esperou por sua inevitável sucessora. Nenhuma veio. O conjunto de árvores estava silencioso e imóvel.
Depois das duas semanas mais estranhas e terríveis de sua vida, e depois de um dia particularmente bizarro, não deveria ter surpreendido Simon ao ouvir uma voz nova e desconhecida falando com ele da escuridão além das árvores, uma voz que não era a do sitha, e sem dúvida não vinha do lenhador, que jazia como uma árvore derrubada.
— Vá em frente e pegue... — disse a voz. — A flecha. Pegue. Ela é sua.
Simon não deveria ter ficado surpreso, mas ficou. Caiu desamparado no chão e começou a chorar, grandes soluços sufocados de exaustão, confusão e desespero total.
— Oh, Filha das Montanhas... — disse a nova voz estranha. — Isso não parece bom.
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