Capítulo 01
Muriel Margaret McAuley tinha oitenta e quatro anos quando viu pela primeira vez um homem virado do avesso por um monstro marinho. Você poderia pensar que isso incomodaria uma mulher da sua idade, mas, como Muriel gostava de dizer, ela já tinha visto muita coisa em seus curtos oitenta e quatro anos.
Mais notavelmente, foi a primeira a chegar ao local em sessenta e seis, quando a lâmpada do farol falhou e o barco de pesca Charlotte Dane colidiu com as rochas, despejando sua carga humana na baía. Muriel testemunhou tudo da janela da cozinha, manchada de chuva, enquanto lavava a louça. Ela correu da pequena casa que dividia com o marido, Billy, e entrou no mar, enrolando seu avental e arrastando corpos mutilados da água agitada. O restante da vila de pescadores de Witchaven logo se juntou à sua tentativa de resgate. Alguns dos homens que resgataram do mar gelado seguiam com vida. Alguns estavam mortos e outros estavam em pedaços.
Na manhã seguinte, Muriel levou seu confiável carrinho de mão até a praia e recolheu o máximo de partes que conseguiu encontrar. Pernas, braços, pés... Até uma cabeça levada pela correnteza. Deixou seu carrinho de mão no jardim enquanto ligava para as autoridades e, em seguida, preparou sopa para o almoço enquanto esperava que os membros fossem recolhidos para identificação.
Então, sim, é justo dizer que é preciso mais do que um pouco de sangue para revirar o estômago de ferro de Muriel McAuley. Na verdade, a única coisa que Muriel não suportava... E que de fato a enjoava... Eram babacas arrogantes de terno lhe dizendo o que fazer.
— Acho que você deveria ir embora! — disse ela secamente para a mulher alta de terno azul-claro.
A mulher deu um sorriso educado, exibindo fileiras de dentes brancos e imaculadamente retos, mas permaneceu firme na porta de Muriel. O vento costeiro soprou uma mecha de cabelo loiro em seu rosto, que afastou em um movimento casual. Em condições normais, Muriel convidaria alguém para sua casa, ainda mais em uma manhã fria como a de hoje... Porém não está mulher.
O vento uivava do outro lado do Mar do Norte, e a mulher na porta tremeu, tentando ao máximo disfarçar. Aqueles americanos nunca se acostumavam com o clima escocês, pensou Muriel.
— Senhorita McAuley... — disse a mulher num tom brusco, sua fachada simpática quase caindo aos pedaços. — Apenas ouça o que tenho a dizer.
Muriel não conseguia parar de olhar para os dentes. Eram perfeitos. Nunca tinha visto nada parecido. Pareciam esculpidos em marfim, sem uma única falha entre eles, sem uma única imperfeição. Ela não queria nada além de desferir um gancho de direita e arrancá-los da cabeça dura da mulher.
Não era típico de Muriel perder a paciência. Como qualquer pessoa em Witchaven poderia atestar, Muriel nunca levantava a voz. Pelo menos, não com raiva. Quando chamava suas galinhas, ou seu filho Paul para tomar chá, então, claro, podia gritar tão alto quanto um arrulho preso. Contudo Paul tinha saído de casa quarenta anos antes e agora tinha um filho, e Billy tinha construído um galinheiro e uma cerca para impedir que as galinhas fugissem, então a laringe de Muriel estava bem descansada havia algumas décadas.
No entanto aquela mulher estava colocando tudo isso à prova. Ela apertava uma bolsa de couro cara contra o peito, com os nós dos dedos vermelhos de frio.
— Senhorita McAuley, esta é uma oportunidade única na vida. Você seria, se me permite dizer, uma idiota se deixasse passar.
Muriel estreitou os olhos e tentou se recompor.
— Já fui chamada de coisas muito piores que idiota ao longo dos anos, mocinha. Na verdade, acho que já fui chamada de todos os nomes possíveis e por pessoas que respeito muito mais do que você. E, devo acrescentar, é Sra. McAuley, não Srta..
Os olhos da mulher brilharam. Era uma linda moça, com no máximo trinta anos. Muriel achou que seria melhor usar seus encantos nos homens. Que velho palhaço recusaria um sorriso desses?
— Oh, você tem marido? Talvez eu devesse conversar com ele. Tenho certeza de que deve haver um jeito de chegarmos a um acordo e acabar com essa situação desagradável de uma vez por todas.
— Meu marido morreu há doze anos.
O sorriso da mulher desapareceu, seus lábios eclipsando os dentes brancos e brilhantes.
— Entendo.
— Morreu nesta casa. A casa que ele construiu. Nossa casa. E quando faleceu, que Deus o tenha, esta terra e tudo o que há nela se tornou meu. Vivi aqui a maior parte da minha vida. Meu filho nasceu aqui e eu certamente morrerei aqui, no entanto não antes de estar pronta.
Muriel se ergueu em toda a sua altura, com seus 1,67m, e seus olhos nivelaram-se ao queixo impecável e sem manchas da mulher.
— E certamente não vou vender para um jornaleiro da televisão para que construa um campo de golfe e arruíne um belo pedaço de terra, não importa quantos milhões de libras ofereça.
O sorriso retornou ao rosto da mulher, seus dentes parecendo forçar sua boca a se abrir no desejo de deslumbrar todos os espectadores.
— Bilhões. — disse ela.
— Como?
— O Sr. Grant é bilionário. Não um milionário.
— Não me importa se ele caga barras de ouro. — disse Muriel, com as bochechas corando com a escolha da linguagem. — Eu e aqueles que restaram nesta vila com um mínimo de decência jamais venderemos para alguém assim, nem por toda a fortuna da China. E o fato de mandar você de porta em porta como uma... Como uma maldita vendedora de aspiradores de pó, em vez de vir em pessoa, diz muito sobre o seu caráter.
— O Sr. Grant é um homem muito ocupado, como tenho certeza de que pode perceber. Ele adoraria vir conhecer os moradores pessoalmente, todavia tem muitos deveres no exterior.
— É, mais gente para expulsar de suas casas? — retrucou Muriel. Ela estava ficando com frio e queria fechar a porta e voltar para dentro, para se sentar e tomar uma xícara de chá quente, mas os pés da mulher estavam plantados firmes na porta.
— Não estamos expulsando ninguém! — disse a mulher, evidenciando suas próximas palavras. — Estamos oferecendo a eles uma chance única de felicidade.
— Vocês estão destruindo a beleza natural da terra!
Muriel olhou para além da mulher, para as ondas quebrando contra a praia de areia branca e intocada. As dunas ondulantes levavam até o penhasco onde os jovens locais costumavam desafiar a morte pulando na água gelada, na época em que havia jovens locais em Witchaven.
A mulher bufou.
— Você chama isso de beleza? Espere até ver o que o Sr. Grant tem em mente.
Muriel balançou a cabeça.
— Já vi no noticiário. Estão planejando ajardinar toda a área. Esta terra é protegida, sabia? O que ele está fazendo é ilegal.
— Bem... — disse a mulher. — A prefeitura local discorda.
— É, e que bando de bundas moles são. Eles podem estar dispostos a ser comprados, porém eu não. Não podem me comprar, nem por todo o chá da China.
— Você já disse isso.
Muriel encarou a mulher. Será que estava se repetindo? Estava brava demais para pensar direito. Tinha visto o Sr. Grant delinear seus planos para a área no noticiário.
Uma favela, ele havia chamado a vila. Uma favela!
Witchaven era muitas coisas, contudo não era uma favela. Uma vila de pescadores desde o século XVIII, consistia em duas dúzias de chalés e algumas casas de fazenda, todas de um branco ofuscante ao sol. As vistas eram espetaculares, o sol nascia sobre o oceano todas as manhãs. A vida era pacífica ali. A única concessão ao progresso moderno foi a adição de eletricidade e linhas telefônicas nos anos 60, mais ou menos na época em que os Correios foram abertos. Agora, é claro, os Correios não existiam mais. Mark e Lizzie haviam fechado as janelas pela última vez quatro meses atrás, tendo aceitado um acordo com a Organização Grant. Três dias depois, o prédio foi demolido, o mesmo prédio onde Muriel costumava postar seus cartões de Natal e pegar suas compras.
Muriel se irritou.
— Sei muito bem o que aquele idiota da TV planejou, no entanto o povo de Witchaven ainda valoriza a integridade e a tradição. Não vamos tolerar que vocês venham aqui e tomem nossas terras, transformando-as em...
— São as terras de Patrick Grant.
O sangue de Muriel ferveu. Ah, eles já a haviam mostrado seus títulos de propriedade antes, um mapa com partes do litoral coloridas de vermelho para marcar as terras que Grant supostamente possuía. A cada nova escritura que lhe apresentavam, a área vermelha avançava cada vez mais pela costa, invadindo propriedades que existiam desde a fundação de Witchaven.
Os dedos de Muriel se fecharam em punhos trêmulos e frouxos.
— Saia da minha casa. Saia da minha propriedade e da minha terra.
Ela avançou em direção à mulher, que deu um passo para trás, tropeçando no degrau torto.
— E não se engane, esta é a minha terra e permanecerá assim até que eu esteja morta e no meu túmulo, milionário ou não.
— Como já disse, bilionário. — respondeu a mulher em um tom frio. Seu sorriso desapareceu, substituído por um vislumbre de desprezo. Ela se virou para ir embora, indo em direção ao carro parado perto do portão, escuro e ameaçador, com os vidros escurecidos. Um homem corpulento de óculos escuros estava de braços cruzados, com um rádio conectado ao ouvido.
Segurança? pensou Muriel. Contra quem? Eu?
Ela riu, e a mulher olhou para trás, olhando-a com curiosidade.
— Considere suas opções, Sra. McAuley. — falou. — Uma oportunidade como esta não aparece toda vez, e quem sabe por quanto tempo permanecerá em aberto. Todo mundo tem um preço.
Muriel escondeu as mãos trêmulas atrás das costas e sorriu.
— Vou te dizer uma coisa, mocinha. Volte correndo para o seu chefe e diga a ele para dobrar a oferta.
A mulher fez uma pausa.
— Srta. McAuley... Desculpe, Sra. McAuley... Eu sabia que a senhora era uma mulher inteligente, sabia mesmo. — ela se dirigiu a Muriel, enfiando a mão na bolsa. — Tenho a papelada...
— É? — interrompeu Muriel. — Então diga a ele para dobrar a oferta e depois enfiar no cu.
A mulher congelou. Respirando fundo, tirou as mãos da bolsa.
— Está cometendo um erro. — avisou. — O maior erro da sua vida.
Muriel a encarou.
— Saia da minha terra ou atiro em você! — disse baixinho, quase num sussurro.
A mulher recuou, as pernas se movendo quase tão rápido quanto a boca.
— Está me ameaçando? Porque vou chamar a polícia. Juro que vou...
— Certo, estou. — Muriel se virou, atravessando o corredor com uma velocidade surpreendente. — É melhor ter ido embora quando eu voltar, mocinha, ou vou enfiar um cartucho nesse seu bumbum roliço!
Ela ouviu a mulher gritar algo para o motorista e viu uma onda de atividade pelo canto do olho enquanto abria a porta de um armário e colocava a mão lá dentro.
— Estou indo atrás de você! — rugiu, olhando pela janela para a mulher correndo pelo jardim de saia e salto alto. Em pânico, a mulher tropeçou, caindo na lama e gritando de terror enquanto o segurança corria para ajudá-la.
Quando Muriel reapareceu na porta, a mulher a encarou, o branco dos olhos visível através da lama úmida que escorria pelo rosto como argila derretida, olhos que fitavam com ódio indisfarçável a arma nas mãos de Muriel.
Uma vassoura velha de madeira.
— Não é uma arma! — disse a mulher, cuspindo um bocado de gosma nojenta na grama.
— Eu disse uma arma? — perguntou Muriel inocentemente. — Desculpe, quis dizer vassoura. Vou te dar uma pancada na bunda com uma vassoura.
A mulher jogou um punhado de lama em Muriel. O projétil caiu aquém do alvo.
— Sua velha vadia! — rosnou. — Você não vai viver para sempre!
Seu sotaque havia mudado, soando mais solto, menos refinado. O segurança a ajudou a se levantar, limpando a lama de sua jaqueta, e ela deu um tapa nas mãos desajeitadas dele, afastando-as do peito.
Muriel sorriu e acenou, observando a mulher se enfiar no carro, ainda gritando palavrões. Se achava que isso chocaria Muriel, estava completamente enganada. Ela crescera e vivera entre pescadores a vida toda e, embora tentasse nunca xingar, já ouvira tudo aquilo antes. O carro derrapou na curva, as rodas levantando grossas nuvens de terra enquanto o silêncio voltava a reinar na modesta casa de Muriel.
— Uma favela... — murmurou Muriel. — O homem é uma ameaça infernal.
Ela estremeceu. Estava frio lá fora hoje. O céu pairava acima, cinzento, pesado e prestes a desabar. Muriel estendeu a mão para a porta. Suas mãos tremiam. Estavam sempre tremendo nesses últimos dias. Não conseguia pará-las.
Não importava. Só a incomodava quando tomava chá, e aprendera da maneira mais dolorosa a não encher a caneca até a borda. Fechou a porta da frente e voltou para a sala, com o coração disparado de excitação. Lá, sentou-se perto da janela em sua cadeira favorita e contemplou a praia. Além dela, o mar azul se estendia até o horizonte, um barco de pesca balançando preguiçosamente sob as nuvens.
Muriel fechou os olhos. Queria relaxar, mas não conseguia. Tinha trabalho a fazer. E, de qualquer forma, sabia que eles voltariam em breve, com mais ofertas e ameaças veladas.
Eles sempre voltavam.
***
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário