quinta-feira, 4 de setembro de 2025

The Haar — Capítulo 04

Capítulo 04


A chuva caía das nuvens pesadas quando eles saíram da casa de Terry. Eram oito horas e a noite já havia caído em Witchaven. Muriel e Arthur se despediram dos Bairds e seguiram em direção ao trator de Arthur. Gotas de chuva caíam sobre o veículo, cujo exterior, antes verde, havia se transformado há muito tempo em um marrom-ferrugem opaco. Muriel se apoiou na bengala, esforçando-se para levantar o capô com a mão livre.

— Aqui, eu pego. — disse Arthur.

Cansada demais para recusar, ela olhou para ele e tentou sorrir enquanto ele ajeitava seus cachos sob o capuz de sua capa de chuva vermelha.

— Precisa de uma carona? — perguntou Arthur.

Muriel olhou para o trator com desgosto.

— Nessa armadilha mortal? Vou me arriscar com o tempo.

— Como quiser. Na velocidade que você anda, talvez chegue em casa a tempo para o Ano Novo.

— Ah, dá o fora, velho. — ela riu.

Arthur subiu os dois degraus de metal e sentou-se no banco, acelerando o motor. Ele acenou, e Muriel ficou parada na chuva, observando-o se afastar, com uma fumaça espessa saindo do escapamento do veículo.

Ela seguiu pela trilha.

— Ano novo mesmo. — murmurou, sorrindo. — Sujeito atrevido.

Enquanto caminhava, a estrada mudava de cascalho para lama, cortesia dos caminhões que subiam e desciam sem parar, dia e noite, transportando areia, terra e até árvores derrubadas, suas memórias queridas levadas embora como corpos de uma cena de crime. O pinheiro silvestre em que Billy havia gravado suas iniciais fora um dos primeiros a desaparecer, junto com um pedacinho do seu coração. Ouviu um motor roncar atrás e se virou para encontrar Arthur e seu trator vindo em sua direção.

— Eu não podia te deixar ir por aqui, não é? — gritou o homem por cima do barulho.

Muriel riu baixinho para si mesma.

— Você é um tolo, Arthur Eastman. — gritou ela. — Mas sempre fui fã de um pouco de tolice. Aqui, me ajude a levantar.

Arthur estendeu a mão, erguendo-a para o segundo assento do trator, e os dois seguiram pela lama e colinas artificiais, onde antes ficava a fazenda de Paul Macleod. Não havia mais vestígios seu, nenhum legado. Simplesmente estava lá um dia e desaparecia no outro, como grande parte de Witchaven. Uma JCB amarela estava de sentinela onde antes ficava o estábulo de Paul, cercada de imundície e detritos.

— Não acredito nisso, Davey. — disse Arthur por cima do barulho do motor. — Ele nasceu naquela casa. Capitão do porto por cinquenta e poucos anos. Pensei que seria o último de nós a vender tudo.

— É. — suspirou Muriel. — Não se pode lutar para sempre.

— Hã? — gritou Arthur. — Não consigo te ouvir.

Muriel ergueu a voz.

— Estamos velhos, Arthur. As pessoas lá fora não se importam conosco. Quando foi a última vez que viu sua família?

Ele pensou por um momento.

— Dois Natais atrás. Não posso culpá-los. Este lugar está uma bagunça. Quem quer passar o Natal em um canteiro de obras?

Ele desligou o motor e eles ficaram em silêncio. Ao longe, as grandes máquinas rangiam, chacoalhavam e rugiam, ecoando pela baía, uma tempestade constante de ruído metálico.

— É uma pena, eu te digo isso. — disse Arthur. Seu olhar se voltou para o mar, para a névoa cinzenta no horizonte. — Esta área deveria ser protegida, e aqui estão eles, destruindo-a como fantasmas, e ninguém se importa.

— Algumas pessoas se importam. — disse Muriel. — Li no jornal que alguém está organizando uma petição e espera que a BBC noticie.

— Não vai adiantar nada! — disse Arthur, lançando um olhar furtivo para Muriel e depois se voltando para o mar. — Talvez Davey tenha razão. Estamos apenas sendo uns bodes velhos teimosos?

— Sim, estamos! — disse Muriel. — E eu não trocaria por nada.

Ela olhou melancolicamente para uma área da praia onde os penhascos se erguiam em sua altura máxima, as ondas quebrando contra a rocha em uma batalha sem fim. Escondida entre aquelas rochas ficava a entrada da Caverna de Rory, um marco local, e o local onde Rory Gordon, chefe pirata e canibal, supostamente escondera seu tesouro. Muriel sabia que Arthur também conhecia a história que estava prestes a contar, entretanto estava melancólica e sentia que sua companhia também.

— Foi lá que Billy me pediu em casamento. — disse. — Eu o conheci um dia no porto. Era uma sexta-feira. Billy desceu daquele barco fedendo a peixe, como sempre. Eu o repreendi por isso, e o velho bobo pulou no mar para se livrar do cheiro. Quando saiu, parecia a própria Nessie, pingando algas marinhas. E cheirava ainda pior, Arthur, posso te garantir.

Arthur sorriu.

— Ele era um idiota, sem dúvida.

— Era mesmo. E um bruto bonito. Caminhamos pela praia de mãos dadas. Não havia estrada naquela época. Sem carros, sem poluição. Dava para ver as estrelas de verdade.

— Sim, ainda me lembro. — disse Arthur, com a voz um pouco embargada.

— Billy me levou até a Caverna de Rory. Estava toda iluminada com velas. Tinha voltado mais cedo e preparou tudo, depois esperou no barco para me encontrar. Foi a coisa mais linda que já tinha visto. Foi tão romântico. Ele se ajoelhou e... E...

Mas ela não conseguiu terminar.

Arthur tirou um lenço de papel do bolso e a entregou.

— A vida tem um jeito de nos pegar, não é?

Muriel assentiu, enxugando os olhos.

— É, acho que sim. — ela olhou para as estrelas. Elas não estavam tão brilhantes quanto antes. — Fiz as pazes com a minha morte. — continuou. — Acho que depois que Billy faleceu, tive que fazer isso. Ela chega para todos nós. Porém sempre pensei que passaria os meus dias restantes aqui, na minha casa. É onde pertenço. É onde Billy pertence. — ela fez uma pausa. — Não quero sair. Sinceramente, Arthur... Prefiro...

— Eu sei! — interrompeu ele. Pousou a mão grande e calejada sobre a de Muriel e a deixou descansar. — Eu sei.

Um motor rugiu ali perto. Muriel olhou para as dunas de areia, para a grama seca ondulando ao vento.

— O que é agora? — murmurou Arthur.

— Quase sempre problema! — disse Muriel.

— É, vamos ter um.

Um carro surgiu de trás da duna, um 4 por 4 com luzes piscantes no teto, como um carro de polícia. Deu um toque rápido e completamente desnecessário da sirene e estacionou em frente ao trator de Arthur. Um pedaço de carne em um terno mal ajustado saiu do carro e caminhou na direção aos dois com um andar presunçoso.

— Onde pensam que vão? — perguntou ele com sotaque americano. — Esta estrada está fechada. Propriedade da Organização Grant.

— É o meu rabo! — disse Arthur. — Esta é a estrada para a casa da Muriel.

— Esta estrada é só para veículos de trabalho.

— Isto é um trator, filho. Para que você acha que serve? Corrida de arrancada?

O homem parecia inseguro. Ele falou baixinho em um walkie-talkie, olhando de Arthur para Muriel, e de volta para Arthur.

— Preciso ver um documento de identidade.

— Nem ferrando. Agora saia da frente antes que eu passe essa fera direto pelo seu carro chique.

O homem hesitou.

— Ele está falando sério. — disse Muriel. Estava ficando frio agora, e desejou ter usado um xale por baixo da capa de chuva.

— Aposto que sim. — murmurou o homem e falou algo inaudível no walkie-talkie de novo. — Ok, pode passar desta vez.

— Eu sei que posso, porra! — disse Arthur. — Nós moramos aqui, seu metido.

O homem recuou para dar passagem. Arthur ligou o veículo e estendeu um braço com o dedo médio levantado. O trator rugia a oito quilômetros por hora, Arthur se certificando de que sua saudação com um único dedo estivesse voltada para o homem o tempo todo.

— Arthur, sério. Não os antagonize. — disse Muriel, contendo uma risadinha.

O homem observou com o rosto impassível enquanto eles passavam. Muriel se inclinou e buzinou. Quando o homem pulou de surpresa, ela caiu na gargalhada, e então ele se foi, de volta ao seu carro caro para fazer o que quer que Grant o pagasse para fazer.

A lua cheia ondulava contra a água. Antigamente, Muriel costumava avistar focas e até golfinhos nadando perto da costa. Agora, com todo o barulho, não havia nada. Sons estranhos ecoavam por todos os lados. O bipe estridente de um caminhão dando ré, o estalo do chão se partindo sob a força de uma escavadeira, rádios competindo entre si transmitindo suas músicas pela baía, o som transportado sem esforço pelo vento constante. Até a maioria das gaivotas havia fugido da área para lugares mais tranquilos. Pela primeira vez, se perguntou se Davey Farquhar estava certo em... Ela avistou algo.

— Meu Deus, Arthur! — exclamou Muriel, batendo furiosamente em seu braço. Seu dedo apontou para a frente. — O que eles estão fazendo?

Arthur semicerrou os olhos na escuridão.

— Não sei, não estou usando meus óculos.

Mas Muriel conseguia ver muito bem o que estava acontecendo.

— Minha casa! Eles estão na minha casa!

A silhueta de uma escavadeira JCB se destacava contra o céu que escurecia. Arthur pisou fundo no acelerador, o trator acelerando para 24, depois 32 quilômetros por hora. Fumaça preta saía do motor, o veículo vibrando sob eles.

— Estão derrubando o galinheiro. — ofegou Muriel. Seu coração batia descontrolado. Queria pular do veículo e enfrentá-los, porém seu quadril jamais a perdoaria. Em vez disso, esperou até que Arthur parasse na escavadeira e desceu cautelosamente os degraus de metal.

— O que vocês estão fazendo? — gritou ela enquanto cambaleava em direção aos homens que formavam um semicírculo protetor ao redor do veículo de trabalho amarelo. A escavadeira avançou bruscamente, destruindo o galinheiro em um movimento desajeitado. Uma galinha cacarejou e irrompeu das ruínas como uma pequena fênix, quando a escavadeira pousou sobre a madeira estilhaçada e o arame emaranhado. Muriel prendeu a respiração e se encostou em um poste da cerca.

Não conseguia respirar.

Um dos homens se aproximou dela. Ele usava um capacete e uma jaqueta de alta visibilidade que brilhava intensamente sob a luz dos faróis da escavadeira.

— Afaste-se, senhora. — disse ele. — Aquele galpão fica na propriedade Grant. Tivemos que demoli-lo.

— Não... Está... — Muriel conseguiu dizer. — Tenho... O mapa da propriedade... Lá.

Ela tentou gesticular em direção à sua casa, no entanto não conseguiu levantar o braço. Por que não conseguia controlar o coração? Ela se enrolou no poste, abraçando-o.

O homem balançou a cabeça.

— Não, senhora. Olhe aqui.

O homem desenrolou uma folha de papel imaculada e apontou.

— Está aqui é sua propriedade. Você vai notar que a sua cerca e aquela coisa que derrubamos estavam, na verdade, na propriedade do Sr. Grant.

— Isso não é... Verdade. Você só... Inventou isso. Esse... Não é o mapa.

O homem sorriu.

— Bem, é melhor você discutir isso com seu advogado.

— Sabe, dinheiro compra muita coisa... — disse Arthur, bufando em direção a eles. — Entretanto não compra decência. Não compra compaixão. E não compra um maluco com uma porra de espingarda.

Muriel viu os olhos do homem se arregalarem, depois se virou e viu Arthur se aproximando, sua velha espingarda de fazenda em riste. Ele estalou a arma e tirou dois cartuchos do bolso para dentro da câmara.

— Agora escute aqui... — disse o homem, recuando. Os outros trabalhadores também haviam parado. Os homens se entreolharam, nervosos.

— Não, escutem vocês, seus idiotas! — disse Arthur. — Saiam daqui e deixem uma velha em paz. — Arthur fechou a espingarda com um estalo. — Será que não têm vergonha? Não passam de um bando de valentões.

— Você não atiraria. — disse o homem, olhando para os colegas em busca de apoio.

Arthur ergueu a arma e olhou para o cano.

— Caralho, me tente pra ver! — falou. Inclinou a cabeça na direção de Muriel. — Desculpe o palavrão.

O trabalhador balançou a cabeça.

— Escute, amigo. Estamos apenas cumprindo ordens.

— É? — disse Arthur. — Como na Alemanha nazista?

— Vai se foder, seu velho desgraçado. Vocês tiveram todas as chances do mundo para se mexer. Agora, por que não...

A espingarda trovejou nas mãos de Arthur. Um monte de terra surgiu diante dos pés do homem. Seu queixo caiu, o rosto mortalmente pálido.

— Devo estar ficando velho... — disse Arthur. — Parece que minha mira não é mais a mesma.

O homem deu vários passos para trás.

— Vai se arrepender disso! — ameaçou. — Estará preso esta noite ainda, eu juro.

Ele olhou para os outros trabalhadores, mas estes já haviam fugido. Restavam apenas a escavadeira e seu motorista, o veículo buzinando sem parar enquanto dava ré. O homem pulou a bordo e, depois de realizar a curva de três pontos mais lenta do mundo, seguiram pela estrada em direção à névoa que se aproximava.

Arthur foi até Muriel e a abraçou.

— Aqui, você está bem?

Ela estava quase conseguindo controlar a respiração, contudo suas pernas doíam e desabou na beira da grama.

Lá, ela chorou.

Arthur ajoelhou-se ao seu lado, observando a escavadeira se tornar uma forma borrada na névoa da noite, um estranho fantasma amarelo pairando indeciso entre mundos.

— Vamos! — disse ele. — Vamos para dentro.

Muriel deixou que ele a levantasse delicadamente. Uma dor aguda a atingiu. Olhou para a baía, lembrando-se de como costumava observar a traineira¹ de Billy se chocando contra as ondas enquanto este voltava para casa. Agora, o único barco visível era um enorme transatlântico comercial ao longe, suas luzes brilhando vertiginosamente contra o céu noturno.

— Eles vão voltar. — disse ela com tristeza.

— Sim, vão. — as palavras de Arthur não eram tranquilizadoras, entretanto não precisavam ser. O tempo para garantias já havia passado. A verdade era tudo o que importava agora.

Lá dentro, Arthur a acomodou na cadeira perto da janela e colocou a chaleira no fogo. Muriel pegou seu tricô na mesa lateral, estava na metade de uma malha grossa de inverno e retomou o trabalho. O clique-claque das agulhas sempre a acalmava. Estava mais lenta do que antes, graças à artrite e aos tremores, todavia ainda conseguia. Olhou pela janela... Meu Deus, precisava de uma boa limpeza, e viu Arthur lá fora, inspecionando os restos do galinheiro.

Quando ele entrou, Muriel notou a mancha em seu paletó de onde havia limpado o sangue das galinhas.

— Quantas? — perguntou.

— Duas se foram. Poderia ter sido pior.

— É, poderia ter sido.

— Passarei amanhã para consertar a cerca.

Ela assentiu. Não havia mais nada a dizer. Muriel fechou os olhos. Nunca se sentira tão cansada. Arthur acendeu um cigarro, o cheiro de cigarro velho preenchendo o ar. Muriel não se importou. Isso a lembrava de Billy. Parecia que tudo lembrava nesses últimos dias. Ela abriu os olhos e olhou para o céu.

Ele estava lá em cima? Estava observando?

— Talvez eu te veja em breve. — murmurou baixinho.

— O que foi? — perguntou Arthur. — Você disse alguma coisa?

Mas Muriel não respondeu. Tudo que queria era dormir. E embora nunca fosse admitir, uma parte sua, lá no fundo, não se importava se nunca acordasse.



Notas:

1. Traineira é uma pequena embarcação de pesca, com a popa reta, destinada a utilização de redes como instrumento para capturar peixes.

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