Capítulo 01
— Jacen, gostaria de rezar a bênção?
Sou arrancado de outro devaneio cinzento e sem forma. O ciclo noturno está caindo sobre a Colmeia Praxis e passei as últimas dezesseis horas em uma linha de montagem. Levo um momento para processar o que ouvi. A leve intoxicação do amasec¹ não está ajudando. Bem, não com isso.
Myra. A doce e linda Myra. Está me encarando com expectativa, os olhos azuis me encorajando a rezar. Está sempre me encorajando a rezar, ainda mais na frente das crianças. O Imperador é nosso pai, afinal, ela diz: elas deveriam aprender sobre Ele com o próprio pai.
— Claro! — digo por fim, esboçando um sorriso cansado. Curvamos a cabeça sobre nossos pratos: Markus, Arden e a pequena Sophya, fazendo a águia sobre nossos peitos. — Poderoso Imperador, agradecemos por Suas bênçãos neste dia, pela luz que nos concede na escuridão. Por favor, proteja-nos do mal e abençoe esta comida, para que ela possa nutrir nossos corpos e possamos continuar ao Vosso serviço. — faço uma pausa. Nunca sei como terminar as orações. — Obrigado. — digo ao fim.
Abro os olhos. Myra está sorrindo. Markus e Arden estão beliscando a comida. Sophya ainda sussurra, de olhos fechados, como se estivesse falando com o próprio Imperador.
Quando ela termina, comemos.
Nossas rações são simples, mas nutritivas: carne de grox reidratada, palitos de carboidrato e um fungo cinza que Myra temperou para torná-lo um pouco mais saboroso, junto com sachês de gelatina vitamínica e pílulas antirradicular para evitar as doenças provocadas pela radiação. As paredes da nossa unidade habitacional são bem forradas, porém os supervisores da fábrica preferem pecar por excesso de cautela.
Eu como vorazmente. Todos nós comemos. Markus e Arden, com oito anos e crescendo quase rápido demais para acreditar, devoram a comida entre gemidos por terem comido a mesma refeição no café da manhã. Sophya, tão inteligente, come com alegria, cantarolando algo para si mesma enquanto mastiga. Myra come rápido para poder começar a lavar a louça.
Do lado de fora da janela, de repente, ouço o som de botas, tão familiar quanto a chegada da noite.
— Terceira patrulha hoje. — digo distraído, observando os guardas pelas frestas das persianas. Em instantes, a procissão de capacetes pretos reluzentes passa. — Também houve patrulhas por toda a fábrica hoje.
— Por que há tantas, papai? — pergunta Sophya com a boca cheia de gelatina vitamínica. Dou a ela o melhor sorriso que consigo evocar. — Eles estão aqui para nos manter seguros, carinho. — respondo, embora não menciono que três patrulhas são fora do comum, mesmo para o nosso bloco de habitação.
— Ouvi dizer que encontraram outro corpo na rua! — Markus deixa escapar de repente.
— É, e ouvi dizer que seus olhos foram arrancados, e que estava cheios de insetos e...
— Chega! — grito, mais áspero do que pretendia, e todos se voltam para me encarar. Tomo um gole d’água para apaziguar a culpa, fazendo uma careta ao sentir o gosto metálico. — Sério, onde vocês dois ouviram tanta bobagem?
Os gêmeos se entreolham. Eu conheço esse olhar. Estão tentando decidir se mentem ou não.
— Na escola! — Arden enfim admite.
Bufo e volto a me concentrar na comida esfriando no meu prato.
— Não deve acreditar em tudo que ouve dos seus amiguinhos na escola. — minto. — E está assustando sua irmã.
Sophya me faz sua melhor cara de “Não estou com medo”, contudo consigo ver o medo em seus olhos arregalados. Não posso culpá-la. Também estou com medo, ainda que não posso me permitir demonstrar.
Myra se levanta e começa a recolher os pratos, ignorando a conversa mórbida com a facilidade de uma mãe acostumada a mudar de assunto rapidamente.
— Bem, sabe o que eu ouvi hoje?
— O que foi, minha querida? — pergunto em seguida, igualmente ansioso para falar de outra coisa.
— Lembra do Velho Guryn?
Claro. Guryn Mansk, o guarda cego, mendigava perto da catedral desde que eu era menino.
— O que tem ele?
Myra sorri como se possuísse um grande segredo.
— Pode enxergar!
— Hã? — dou de ombros, voltando ao meu prato. — Como ele conseguiu comprar alguns biônicos²?
— Não, não são biônicos. — insiste Myra, largando o prato que está lavando. — Foi um milagre.
Não queria franzir a testa, no entanto não pude evitar.
— Um milagre?
— O que aconteceu, mamãe? — Arden murmura com a boca cheia de comida.
Markus engole a comida primeiro.
— É, conta pra gente!
Myra se senta na beirada da mesa. As crianças ficam instantaneamente encantadas. Ela é dez vezes melhor contando histórias do que eu jamais serei.
— Bem, eu estava voltando da catedral para casa e o vi lá, dançando na rua. Ele disse que tinha visto um anjo em um sonho e, quando acordou, conseguiu enxergar!
— Um anjo? — Sophya grita.
— Um anjo do Imperador! Não é emocionante? — ela diz, batendo palmas.
Seu olhar se volta pra mim. Esperando uma resposta. Confirmação. Apoio. Tomo outro gole de amasec para ganhar alguns momentos e pensar em algo para dizer, algo que não seja insensível ou sombrio.
De repente, tenho seis anos de novo, no velório do meu pai, em pé numa sala a menos de três metros de onde estou jantando.
— Os milagres do Imperador estão por toda parte. — digo, lembrando-me de um trecho das escrituras que alguém leu. — E se orarem com bastante afinco, milagres acontecerão com vocês.
———
O resto da noite passa rápido. Sento-me na minha cadeira favorita, tentando manter os olhos abertos até a hora de colocar as crianças para dormir. Luto contra a vontade de terminar meu amasec porque sei que vou me servir de outro e já tomei demais. Myra le para eles um panfleto que ganhou na catedral. De alguma forma, mesmo no fim do dia, ela nunca parece perder o vigor.
Tão parecida com minha própria mãe, antes de perder a razão.
Finalmente, a história de Myra sobre Sebastian Thor chega ao fim e é hora de colocar as crianças para dormir. Os meninos protestam, como protestam por terem que fazer qualquer coisa além de correr em círculos e brigar, mas Myra os guia com tato para seus quartos com a mão gentil de uma mãe, com muito mais eficácia do que eu teria feito.
Levo Sophya até seu pequeno nicho de dormir e a coloco na cama. Vou apagar o lúmen.
— Boa noite, minha estrela. Durma bem.
— Papai?
Eu me viro.
Ela fica em silêncio por um longo momento, mexendo com sua boneca esfarrapada.
Quantos anos tinha quando a fiz para ela? Um? Dois?
— Você não vai deixar os monstros me pegarem, né? Aqueles de quem Markus e Arden estavam falando?
— Ah, minha estrelinha... — falo, ajoelhando-me ao lado da sua cama e segurando sua mão na minha. — Não há monstros aqui.
Seu rosto se contorce em pensamentos. Posso ver sua pequena mente dando voltas, se perguntando se deve ou não confiar em mim. É uma menina inteligente e mais observadora do que imagino. Ainda não aceitei de tudo que já não é um bebê.
— Papai, você rezaria ao Imperador por mim?
— Sophya, você sabe que pode rezar ao Imperador quando quiser e Ele a ouvirá. — respondo. Parece algo que Myra diria, só que soaria como se realmente acreditasse.
— Eu sei, mas quero que você reze. — minha pequena protesta em uma voz baixinha. — Por favor?
É claro que concordo. Como não poderia? Que tipo de pai não rezaria por sua filhinha assustada?
Fecho os olhos e faço o sinal da águia sobre o coração.
— Ó glorioso Imperador, consagrado na Terra Sagrada, humildemente imploro, por favor, deixe Sua luz imortal brilhar sobre esta cama e a mantenha bem, bem segura para que minha pequenina possa dormir esta noite.
Sophya abre um olho.
— E sem pesadelos. — interrompe.
Contenho uma risada.
— E, por favor, de a ela bons sonhos.
Sophya sorri. Em termos de orações, não era uma das minhas melhores, contudo parecia ser suficiente.
— Obrigada, papai! — diz ela, abrindo os braços para um abraço.
Eu a envolvo em um grande abraço. Lá fora, ouço o som de botas de segurança com bico de aço. E, ao longe, gritos.
— O Imperador te protege, meu amor! — sussurro enquanto a abraço com força. — E eu também.
Capítulo 02
Já estou correndo em direção à doca de carga quando um transporte terrestre entra com um gemido no centro de desembarque. Nunca deixo de correr, correr ou acelerar para algum lugar, e sei onde e quando minhas cargas chegarão sem que um megafone lobotomizado me diga. Trabalho nesta fábrica desde os treze anos de idade, no padrão terráqueo, como meu pai antes de mim.
Um robô de carregamento Sentinel se aproxima ruidosamente do pesado transporte terrestre. Sua carga é composta de produtos químicos para baterias e bobinas magnéticas, invólucro de ósmio e recipientes de aço, como acontece sete vezes por dia, todos os dias até o fim da galáxia: todo o material necessário para fabricar conjuntos de energia para armas laser. As munições produzidas em Entorum abastecem os exércitos do Imperador em todo o setor. Sou apenas uma minúscula engrenagem no processo, destinado a ser substituída no momento em que não puder mais cumprir meu dever, mas sou uma engrenagem competente, servindo ao Imperador em qualquer capacidade limitada que me seja possível.
Toco minha placa de dados, retransmitindo os manifestos atualizados para o cogitador central que eventualmente alimentará o supervisor do Mechanicus, Magos Ghould, responsável pelo complexo manufactorum. Uma mensagem retorna, indicando que estamos 27 minutos atrasados para nossa próxima remessa e que, como supervisor, sou diretamente responsável.
Uma porcentagem de suas rações semanais está sendo deduzida. Abençoados são aqueles que servem ao Imperador de corpo e alma.
— Vamos descarregar essas caixas! — grito para o piloto do Sentinel, sem me importar com minha dor de cabeça. — Vocês três... — grito para os servidores de carregamento monotarefa parados em silêncio por perto. — Carcaças e filamentos para a linha de montagem Gamma-426, células de plasma para Rho-86 e Delta-281 para os excedentes!
— Obedecemos. — as máquinas responderam em algo próximo da sincronia, antes de se afastarem cambaleando para completar suas tarefas.
Dou um suspiro profundo, quase profundo demais, até sentir que meu peito vai explodir. Todos estão trabalhando em turnos de dezoito horas. Não me lembro da última vez que dormi mais do que algumas horas. Estamos trabalhando além da exaustão e ainda não conseguimos atingir nossa cota diária.
Tudo por causa dos desaparecimentos.
É um termo idiota, um que os policiais locais insistem em usar quando fazem suas rondas diárias para nos questionar sobre as pessoas que desapareceram ou, mais comumente, apareceram mortas, mutiladas ou algo até pior.
Desaparecimentos.
O termo parecia implicar que essas pessoas apenas desapareceram. Como minha mãe. A verdade, seja ela qual for, é muito mais sinistra. Posso senti-la.
— Jacen, ouvi dizer que vamos perder a nossa cota de novo.
Eu me viro. É o Tobin. O bom e velho Tobin. Seus olhos fundos e injetados de sangue lembram os meus. Começamos a trabalhar na fábrica com a mesma idade, ambos órfãos.
— Estamos um pouco atrasados. — minto. Na verdade, a previsão é de que perderemos a nossa cota diária em trinta e dois por cento, o que é mais do que o limite aceitável de leniência por uma margem considerável.
Ele olha para mim. Pelo Imperador, seu aspecto é péssimo. Só consigo imaginar como estou. Tenho evitado me olhar no espelho.
— Como está se saindo? — Tobin pergunta.
— Bem o suficiente. — digo em meio a um bocejo. — E você?
Ouço um baque suave à distância. Vários trabalhadores desviam o olhar do nosso trabalho, embora apenas por um instante. É tudo o que podemos permitir dispensar.
Tobin franze o cenho.
— Me diga você, quão atrasados estamos? A verdade.
Verifico minha placa de dados outra vez e esfrego os olhos. A dor de cabeça que tenho lutado o dia todo me dá um nó na espinha.
— Seria preciso um milagre a esta altura.
Tobin sorri com amargura.
— Milagres não acontecem na colmeia Praxis.
— Myra me contou sobre aquele mendigo cego perto da catedral. Sabe, Guryn Mansk, o velho guarda?
— Sim, o que tem?
— Pelo que parece enxerga agora. Diz que viu um anjo. — digo, esboçando um fraco sorriso. — Parece um milagre para mim.
Tobin me olha com estranheza.
— Será que não ouviu?
— Ouvi o quê?
— Ele está morto.
Eu paro. O guarda cego mendigava na mesma esquina perto da catedral desde que eu era menino. Passo por ele todos os dias a caminho da fábrica. Rastejo de volta pelas manchas borradas das minhas memórias: não me lembro de tê-lo visto nos últimos dias.
— O que aconteceu? — pergunto hesitante. Algo no rosto de Tobin me diz que não quero saber.
— Não vi acontecer, só ouvi falar... — Tobin diz lentamente. — As pessoas diziam que estava correndo por aí gritando. Arranhando os olhos. Dizia que tinha matado alguém. Coisas assim. — ele faz uma pausa. — Se jogou debaixo de um veículo terrestre.
— Guryn não era um assassino. — digo com firmeza. — E não era louco.
Tobin olha para o longe.
— Às vezes, um homem precisa fazer o que precisa ser feito. — sussurrou para si mesmo.
De repente, o chão estremece. Com força. Milhares de trabalhadores param de se mover ao mesmo tempo. Fico imóvel por um momento, me perguntando se o que acabei de sentir foi o latejar dos meus pés ou outra coisa. Então sinto de novo, um tremor percorrendo o chão de concreto.
O arrepio de adrenalina me percorre.
— Todo mundo para fora! — grito.
Uma buzina começa a soar tardiamente. Todos que não são servidores largam tudo e correm em debandada para a saída da fábrica. A voz de Magos Ghould ecoa dos servos-crânios que fervilham sobre nossas cabeças. Ninguém escuta. Uma explosão massiva sacode a fábrica. A onda de choque me joga no chão. Pés me pisoteiam. Tobin grita alguma coisa. Ouço o rugido das chamas antes de sentir a parede de calor vindo em minha direção.
Pela primeira vez desde criança, rezo de verdade com todo o meu coração, mente e alma. Rezo ao Imperador porque não quero morrer, porque quero ver meus filhos outra vez.
Mas o Imperador não me ouve, como sabia em meu coração que não ouviria. Chamas vorazes me engolfam, rugindo tão alto que abafam os gritos de milhares de homens queimando até a morte.
Capítulo 03
Meus olhos se abrem. Estou sentado à mesa da cozinha. Mas é uma mesa diferente, embora seja a mesma cozinha. Fotografias diferentes nas paredes. Desço da cadeira. É mais alta do que me lembrava.
Olho para mim mesmo. Sou um garotinho.
A cozinha está escura, exceto por uma única luz fraca que projeta sombras longas e profundas. Uma mosca zumbia perto da minha cabeça, agitando o ar úmido e fétido. Ouço um som suave de algo arranhando na escuridão, um murmúrio, como uma voz distante.
— O-Oi? — chamo baixinho entre as sombras.
— Olá, Jacen. — diz uma voz familiar.
Minha mãe entra na luz.
— M-Mãe? — gaguejo.
Ela está exatamente como eu me lembrava dela na noite em que foi embora... Cabelo castanho-avermelhado puxado para trás, usando um vestido branco.
— Não se preocupe, Jacen. — ela diz com um sorriso caloroso.
Corro em sua direção nas perninhas de uma criança de seis anos e jogo meus braços em volta dos seus joelhos. Não é o mesmo cheiro que me lembrava, mas não me importo.
— Mãe! — repito. Pelo Imperador, só de chamá-la já é divino. — Mãe... Eu... Estou machucado. Acho que estou morto.
— Não se preocupe, Jacen. — repete ela. — Não se assuste. Você não está morto.
Olho ao redor das paredes familiares da unidade habitacional, exatamente como me lembrava delas quando menino.
— Estou sonhando?
— Não.
Sinto uma sensação crescente de inquietação subindo pela minha espinha.
— Você não é minha mãe. — digo. — Minha mãe está morta.
— Não está morta. — sua resposta vem acompanhada de uma doce voz. — Apenas está... Em outro lugar.
— Então, quem é você?
Minha mãe sorri, o tipo de sorriso que costumava dar antes dos dias ruins, antes das visões.
— O Imperador me enviou.
Olho para a coisa que afirma ser minha mãe. Sua forma se torna mais turva quanto mais a encaro, como se repreendesse meu olhar mortal. Lembro-me da catedral local, dos vitrais representando avatares de fúria justa vencendo abominações imundas em nome do Imperador. Como se lesse meus pensamentos, de repente vejo a sugestão de asas e um halo de luz sagrada.
Estou falando com um anjo.
Caio de joelhos e abaixo a cabeça, incapaz de fazer outra coisa senão...
— Santo Anjo... — começo, sem ter ideia de como pretendo terminar minha frase. Decido pressionar minha testa contra o chão diante dela. O suor escorre para os meus olhos. Algo zumbe perto do meu ouvido.
— Levante-se, Jacen. — minha mãe ordena. Eu obedeço. — Não tenha medo de mim. É pela graça do Imperador, através de mim, que você está aqui.
— O que...
Minha mãe sorri.
— Eu te salvei da morte hoje, no manufactorum.
Um milagre. Myra tinha razão.
— Eu... Não... — gaguejo. Pareço ridículo; não consigo dizer se estou falando com minha mãe ou com um avatar do Imperador. Me importaria mais se não estivesse tão sobrecarregado.
— Sua vida foi salva por um motivo, meu filho. — sua voz continua, colocando a mão no meu ombro. — Um propósito que só você pode cumprir.
— Deve haver algum engano. — digo. — Não posso ser... Quer dizer, não sou... — minha voz se perde. Não sou o quê? Digno? Capaz? Sou um marido que mal consegue se manter sóbrio o suficiente para ficar de pé na fábrica e colocar os filhos para dormir à noite.
Minha mãe me lança um olhar de repreensão.
— Está insinuando que o Imperador Entronizado comete erros?
— Não! — grito. — Jamais faria isso! Só... Que utilidade o Imperador teria para alguém como eu? Não sou santo, nem corajoso. Estou... Destroçado.
— Por causa da sua mãe. — diz o Anjo.
— Sim! — murmuro fracamente. — Por sua causa.
— Suas preces ao Imperador não foram ignoradas. — responde o Anjo com um aceno tranquilizador. — Nenhuma. Ele está ciente do seu sofrimento, pois ve tudo do Trono Dourado.
A mesma náusea crescente me invade, me deixando tremendo.
— Que... Propósito devo cumprir?
Minha mãe sorri docemente, um sorriso amplo demais.
— Este mundo está condenado.
Não consigo evitar de tremer diante aquelas palavras.
— Como assim, “condenado”?
— Vou te mostrar.
O Anjo estende a mão, de uma forma gentil e mais rápido do que consigo me preparar. Seu dedo roça minha testa. Agonia, como uma estaca de metal sendo martelada em meu crânio, me inunda.
E então vejo.
Vejo Praxis queimando em fogo vivo que não emite luz. Vejo sombras com rostos de monstros se esgueirando pela escuridão, alimentando-se de um mundo colmeia enquanto este morre. Vejo homens e mulheres correndo, gritando, rasgando seus corpos enquanto coisas rastejantes roem sua pele. Vejo o sangue de inocentes formando rios nas ruas enquanto o céu adquire a cor de sangue coagulado. Vejo loucos esculpindo seus corpos enquanto monstros espinhosos louvam sua mutilação. Vejo os cadáveres de crianças empilhados em montanhas apodrecidas que bloqueiam o sol.
Vejo Myra gritando em agonia diante de um pesadelo encharcado de sangue que devora sua esperança. Vejo Markus e Arden tirando os olhos do crânio para não precisarem ver.
Eu vejo.
Eu vejo.
Sophya.
A visão termina. Inspiro ar pútrido como um homem se afogando.
— Pelo Imperador! — engasgo. Minha garganta arde, como se tragasse chamas, como se tivesse engolido veneno. Curvo-me, vomitando no chão. — O que... Foi aquilo? — enfim consigo ofegar.
— É uma mostra do destino que aguarda este mundo e cada alma nele. — diz o Anjo com a voz de minha mãe. — É melhor que leve este aviso a sério. A menos que o impeça.
Não consigo fechar os olhos. Cada vez que pisco, vejo ecos daquela realidade horrível gravados no fundo das minhas pálpebras.
— Mas como posso impedir? — continuo a ofegar. — Não sou ninguém.
— Assim como muitos dos Santos do Imperador. O divino pode fazer seu trabalho através de qualquer um, não importa quão pequeno seja. Contudo, primeiro... — o Anjo faz uma pausa. — Precisa provar sua devoção. Ao Imperador.
— Minha devoção?
A forma do Anjo parece se borrar na luz.
— O Imperador ouviu suas preces, Jacen Hertz. No entanto também ouviu sua descrença furtiva, seus pecados impenitentes. O poder de salvar este mundo e sua família não pode habitar um vaso quebrado.
Agarro-me firmemente à perna da minha mãe.
— Eu farei qualquer coisa! — grito, incapaz de pensar em outra coisa além da visão. — Qualquer coisa!
— Traga-me o coração da criança que você mais ama.
Eu congelo.
Não só eu, todo o mundo congela. As palavras do Anjo são como ser mergulhado em água gelada. Sua forma se desfoca mais uma vez enquanto minha casa de infância volta a ficar em foco.
— Não.
O rosto da minha mãe se contorce em uma carranca, do tipo que fazia quando começava a ouvir vozes. Um rosnado ressonante ecoa de todos os lugares ao mesmo tempo, pressionando meus ouvidos.
— Você se recusa? — ela diz, sem abandonar seu brilhante sorriso.
Eu me afasto dela. Meus olhos ardem de lágrimas.
— Não posso! Você está... Está me pedindo para... Para...
— O Imperador sabe o que pede. — diz o Anjo. — Acha que é a primeira pessoa a ter que fazer essa escolha? Não acha que Ele sentiu o mesmo que você quando sacrificou Seus filhos para impedir que essa mesma escuridão engolisse a galáxia?
Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Por que o coração? — finalmente cuspo.
Por que não os olhos, ou os lábios, ou a língua?
— Bem, não importa! — grito tão alto quanto minha garganta me permite. — Não vou matar minha filha!
— A decisão é toda sua. — diz minha mãe, sombria. — Sou apenas uma mensageira. Ou aceita o teste do Imperador e purifica seu espírito no sangue da sua filha, ou assiste seu mundo e sua família perecerem. Terá até amanhã de manhã.
A fraca luz crepita e se apaga, inundando a cozinha em sombras. O Anjo afunda de volta na escuridão, deixando apenas dois olhos brilhantes para me observar enquanto o mundo desaparece.
———
Abro os olhos.
Estou acordado.
Carne queimada e intestinos esvaziados.
Estou vivo.
Antisséptico e pomada.
Eu não deveria estar vivo.
Gritos lamentosos e uivos de animais.
Onde estou?
Meus olhos traçam a esterilidade adstringente de uma ala médica, agitada em completo caos. Restos enegrecidos de carne fumegante estão empilhados dois a dois em uma cama, rosnando orações ao Imperador e implorando pela morte. Cadáveres sufocam o chão e há poucos cobertores para cobrir a todos. Irmãs Hospitaleiras e servidores médicos se arrastam entre os mortos e os moribundos, sobrecarregados, descontrolados. Sacerdotes, confessores e acólitos prestam o socorro que podem. O estalo da pistola laser da Paz do Imperador sendo administrada aos condenados mal penetra a cacofonia.
É como a visão do meu sonho insano, em microcosmo.
Através do caos, como ilhas sinistras em um mar revolto, vejo executores.
Vestidos com armaduras de carapaça pretas e brilhantes e trajados com túnicas de ébano, estes não são soldados comuns. Eles enfrentam a insanidade da ala médica, rostos escondidos atrás de máscaras de respirador carrancudas. Eles exalam ameaça enquanto varrem o quarto, agarrando sobreviventes e levando-os para lugares desconhecidos.
Vejo um sargento da guarda parar para interrogar uma Irmã perturbada. Ela se vira e aponta na direção da minha cama.
Oh, não.
Antes que eu possa pensar ou reagir, os guardas se aproximam de mim. Em instantes, estou cercado por corpos enormes e capacetes reluzentes. Mãos enluvadas me agarram.
— Você vem comigo. — rosna o líder dos executores, gelando meu sangue.
— N-Não posso. — gaguejo. — Sofri um acidente. Estou ferido.
Não consigo ver o rosto do executor, mas de alguma forma percebo que está me lançando um olhar estranho. Só então olho para mim mesmo.
Assim como no sonho, não há um arranhão em mim.
———
Os executores me empurram para uma sala de interrogatório improvisada que poderia ter sido um depósito de suprimentos. Cheira a antisséptico e lubrificante de máquina. Dois deles guardam a porta, com maças de choque nos ombros, porém sem ativar. No espaço confinado, posso ouvi-los respirando pesadamente. Então me dou conta.
Eles estão com medo.
O sargento aponta para uma cadeira no centro da sala.
— Sente-se! — ordena, e obedeço.
Com um suspiro cansado, o agente da lei tira o capacete. Abaixo dele há um rosto tão severo e intimidador quanto sua máscara: cinzento e marcado, com olhos penetrantes sob uma testa franzida. Ele se senta à minha frente, me encarando, até que eu sinta o suor brotando na minha testa.
Por fim, pisca, acomodando-se em seu assento e consultando uma tela de dados.
— Jacen Hertz... — diz, rolando algo em sua tela. — Você é um homem de sorte.
Não me sinto com sorte. A sala parece sufocante. Fecunda. Como no meu sonho ridículo.
— O que aconteceu? — pergunto.
— Um gerador de plasma de subnível sofreu uma falha crítica. — sua resposta vem acompanhada de um tom seco. — O Manufactorum foi completamente destruído.
— Pelo Imperador... — sussurro. — Meu pai trabalhou naquela fábrica. Passei mais tempo da minha vida naquele prédio do que em qualquer outro lugar do mundo. E agora ela se foi. Quantos...
O sargento ergue uma sobrancelha.
— Mortos? Difícil dizer. Os servidores passarão semanas vasculhando os destroços, contudo com o grau de incineração, deve estar dentro da nossa melhor estimativa. Dezenas de milhares.
Tento pensar em algo para dizer, algumas palavras para expressar meu choque e horror. Nada me vem à mente.
— E então tem você. — ele rosna, sua voz caindo para um tom gélido. Naquele momento, entendo que este é um homem que já matou pessoas.
— O-O que quer dizer?
O sargento dá de ombros com a armadura, no entanto não há nada de inocente no gesto. Parece mecânico. Ensaiado.
— A usina de energia da fábrica derrete, praticamente tudo e todos num raio de um quilômetro viram pó, e então te encontramos sem um arranhão.
O executor se inclina para a frente, apoiando o cotovelo no joelho. Parece um servidor tentando parecer humano.
— Entende por que estou um pouco curioso.
Luto contra a vontade de me mexer, inquieto, no assento. De repente, tenho plena consciência dos agentes atrás de mim. Ouço o som de punhos revestidos de couro apertando as armas. Uma mosca passa zumbindo por mim. Sinto o cheiro de suor.
E o odor de enxofre.
— O que você está insinuando?
— Você teve uma vida difícil, Jacen Hertz. — diz o sargento, mudando para um tom de voz que acredito que ele considere amigável. Seu olhar se volta para sua ficha de dados outra vez. — Mãe, Lynne Hertz, suspeita de ser psíquica, mata o pai, Corbin Hertz, e depois desaparece. O filho, Jacen Hertz, enviado para substituir o pai no manufactorum no dia em que completa treze anos, segundo o padrão terráqueo...
— Meu pai não foi assassinado. — interrompo. O sargento ergue uma sobrancelha.
— Como é?
— Minha mãe não matou meu pai. — repito lentamente, com raiva. — Ele se matou. Na noite em que ela foi embora.
O executor olha de novo para a ficha de dados. Vejo uma sobrancelha se contrair enquanto seus olhos escrutam o arquivo.
— Se é assim que você se lembra.
— E minha mãe não era psíquica. — acrescento, irritado.
O sargento me lança um olhar longo e inexpressivo. Percebo que está refletindo sobre um tema difícil, todavia não consigo determinar o que é.
— É claro. — finalmente diz.
Algo em seu tom me irrita, mesmo reconhecendo que está errado.
— Como sabe de tudo isso?
— Sou um investigador autorizado, meu mandato vem do próprio governador planetário. — responde, sem rodeios. — Acha que há algo acontecendo no meu distrito que eu não saiba?
A implicação me deixa enjoado.
— Minha mãe enlouqueceu e meu pai se matou por causa disso. — digo baixinho. — Isso não faz de mim um criminoso.
Os olhos azuis e gélidos do sargento se arregalam. Arregalam demais.
— Esse tipo de coisa, quando acontecem em tenra idade... Afeta um homem. — diz o sargento. — Pode fazê-lo surtar um dia. Talvez explodir aquele velho manufactorum, por exemplo.
— Acha que eu...
De repente, o executor se levanta de um salto, derrubando sua própria cadeira com um estrondo no chão.
— Talvez te surpreenda ou não, Jacen Hertz, mas, de acordo com a Lex Imperialis, tenho a autoridade imposta pelo Imperador para te matar, nesta mesma sala, sempre que eu bem entender. Também pode te surpreender ou não que hoje estou com a paciência muito curta. Então vai me contar tudo o que sabe, neste exato momento, ou te julgarei por desacato à minha investigação e vou atirar na sua cabeça. Você tem até a contagem de três.
Minha mente começa a funcionar a toda velocidade. Não consigo respirar.
— Eu não fiz nada!
Sua pistola está em sua mão.
— Um.
Ele vai me matar.
Meu estômago se revira. Sinto gosto de bile.
— Eu não fiz nada! — grito.
O cano de metal frio pressiona minha testa.
— Dois.
Vou morrer. Vou morrer, aqui e agora.
— Eu não fiz nada! — soluço. — Só quero ir para casa!
O sargento chuta a cadeira com força suficiente para torcer o metal. Ouço o som da arma sendo engatilhada.
— Então como explica o fato de estar sentado aqui, conversando comigo, em vez de ser raspado dos destroços como todos os outros naquela fábrica? — ele berra. — Como?
Conte a verdade a ele, Jacen.
Os capangas se aproximam atrás de mim. Ouço o som do dedo enluvado do sargento apertando o gatilho.
— Foi um milagre.
Depois de uma eternidade, o sargento guarda a arma. Uma respiração frenética escapa de mim. Ignoro a umidade quente que escorre pela minha perna.
— Um milagre? — suspira o sargento.
De repente, estou de volta ao serviço semanal, com Myra, Markus, Arden e Sophya ao meu lado, ouvindo um sacerdote cujo nome não consigo lembrar, pregando sobre os milagres do Imperador ao meu redor. Poderia ter sido o mesmo sacerdote que discursou no funeral do meu pai.
— Fui salvo por um anjo. — digo, engolindo minha própria descrença.
O sargento ergue uma sobrancelha grisalha.
— Sério? E o que o torna tão especial?
Você foi escolhido, Jacen.
Não tenho uma resposta. Não tenho uma resposta para nada disso. Venho tentando descobrir onde o Imperador estava na minha vida desde o momento em que minha mãe, tagarelando como uma louca, saiu correndo de casa para a escuridão da colmeia e nunca mais voltou.
Não tenho uma resposta, ou pelo menos uma que faça sentido.
Você é o único que pode impedir que a escuridão consuma este mundo, Jacen.
Os pelos da minha nuca se arrepiam.
— Oi?
— O quê? — pergunta o sargento, irritado.
Pesadelos sem pele esfolando homens vivos.
Eu me viro. Só estou eu, o investigador e seus dois subordinados.
— Quem disse isso? Ouviu aquilo?
O sargento se move tão rápido que nem percebo até tentar respirar fundo... E surpresa, não consigo. Sua mão aperta meu pescoço. Ouço os servos de sua armadura zumbirem sobre o zumbido das moscas. Meus pés deixam o chão.
Crianças gritando se afogando em oceanos ferventes de sangue.
— Persegui os inimigos do Imperador por mais tempo do que você está vivo, garoto. — ele rosna. Sua voz é uma fúria gélida. Posso vê-la naqueles olhos cinzentos e azulados. — Sua justiça é como uma chama abrasadora. Não haverá sombras para os perversos se esconderem.
O sargento me joga contra a parede com força suficiente para amassar o metal. Desabo no chão, tossindo e ofegando. Os guardas se erguem sobre mim enquanto luto para respirar. A luz da sala de interrogatório tremula. O cheiro. Não consigo respirar.
Como a maldita carniça de um cadáver putrefato em um campo de batalha interminável.
O sargento me encara por um longo momento enquanto estou deitado no chão, vomitando e ofegando, me observando.
— Tirem-no da minha vista. — ele rosna de repente, mecanicamente.
Mãos enluvadas me agarram pelos ombros. A porta se abre com um clique e sou empurrado para o corredor. Vejo o sargento resmungando em seu comunicador portátil, seus olhos mortos me observando enquanto a porta se fecha com força.
Não vão me soltar.
Ele está me seguindo.
Capítulo 04
Servidores barulhentos e ordenados tentam registrar minhas informações em resmas de pergaminho enquanto passo por cada ala do hospital, mas passo correndo por cada um sem dizer uma palavra. Os servidores lobotomizados não fazem nada para me impedir. As Irmãs estão ocupadas demais em salvar vidas para perceber que a minha acabou de ser ameaçada. Sinto os olhos dos executores me seguindo enquanto corro para as ruas. Não consigo ver ninguém me seguindo, porém sei que estão lá, me observando.
Só quando estou nas ruas, virando à esquerda e à direita aleatoriamente, me perdendo nas sombras da colmeia, me permito respirar de verdade. O ar está quente, mais quente do que deveria estar a esta hora do dia. Cheira a enxofre e cinzas. A explosão?
A que distância foi?
Quanto tempo fiquei na unidade médica?
Vagueio, com os olhos nas botas, sem ver nada além de concreto armado passando sob meus pés. Não parece real. Nada disso parece. Esta manhã, me despedi da minha esposa e dos meus filhos com um beijo de despedida e caminhando até a fábrica, totalmente preparado para passar a maior parte do meu dia construindo geradores de energia. Agora que a fábrica se foi, a maioria das pessoas que conheço está morta e um maldito executor acha que sou de alguma forma responsável?
Você precisa se concentrar, Jacen.
— Cale a boca! — digo em voz alta. — Você é um sonho. Não é real.
Caminho pelas ruas escuras da colmeia, virando para um lado, depois para o outro, mergulhando em uma ruminação cinzenta e deixando meus pés me guiarem pelo caminho familiar para casa. Entro em um túnel, e o brilho dos postes de luz se esvai em preto, preto como céus sangrando loucura pelo mundo. Nas sombras, vejo olhos brilhantes me observando, seguindo cada movimento meu.
Por que você duvida do que viu?
— Porque é loucura! — retruco, andando mais rápido. — Quer dizer, anjos, milagres... Eu só... É tudo só...
Não é que não acredite, Jacen. É que teme o que o Imperador lhe pediu.
— Não vou matar minha filha! — grito, alto o suficiente para minha voz ecoar. Os espectadores me lançam olhares estranhamente cúmplices e se afastam, murmurando uns com os outros.
Puxo meu casaco mais apertado em volta dos ombros e quase corro para casa. Uma escuridão se instala, pintando a colmeia com uma melancolia que nem mesmo as luzes da rua conseguem alcançar.
Você viu o que os espera, caso falhe.
A visão. Não consigo escapar dela; mesmo quando pisco, a vejo. A vontade de arrancar meus olhos é contida apenas pelo meu desejo de rever minha esposa e meus filhos. Contudo ainda segue lá, gravada em meu coração. Até mesmo tentar não pensar nisso me dá um nó no estômago.
— Por que tem que ser ela? — pergunto, sentindo lágrimas brotando nos olhos. — Por quê?
Poder exige sacrifício, Jacen. O Imperador está lhe prometendo o poder de salvar um mundo e o resto da sua família. Tal poder tem um preço.
— Então o Imperador é maligno! — grito, lutando contra as lágrimas.
Seus caminhos são misteriosos. Seus planos são incompreensíveis para os mortais.
Passo pela catedral. Guardas patrulham perto do local onde o Velho Guryn costumava mendigar. Há uma área isolada, ao lado de um automóvel apreendido. Vejo guardas me olharem enquanto passo, seus olhos me seguindo.
— Você fez isso com Guryn? — pergunto.
Está se preocupando com assuntos além da sua compreensão, Jacen.
— Mostrou a ele, não foi?
Os cadáveres em decomposição dos meus filhos espreitam as ruas onde eu brincava.
— Não! — grito em voz alta. Vejo mais olhos se voltando para mim. Entro em um beco escuro. Olho por cima do ombro: estou sendo seguido. Sei que estou.
Estou ofegante, me falta ar, com o coração disparado. Está tão quente. Não consigo fechar os olhos. Tudo o que vejo é morte, miséria, sofrimento, horror e...
Você pode evitar tudo isso, Jacen. Só me traga o coração dela.
— Não consigo. — choramingo. Minha cabeça lateja. Meus joelhos estão fracos. — Não consigo.
Você precisa. Por eles.
— Como sei que isso é real? — digo a mim mesmo. — Como sei que não estou perdendo a cabeça, como... Como minha mãe?
Jacen, olhe para mim.
— O-O quê?
OLHE PARA MIM.
Um arrepio gelado me percorre com a insistência da voz do Anjo.
Lentamente me viro. Atrás de mim, dois olhos brilhantes me observam das sombras. Moscas zumbem ao meu redor. Sinto cheiro de enxofre e fezes evacuadas, sangue coagulado e carne queimada.
O tempo está se esgotando, Jacen. Traga-me o coração da sua filha, ou seu mundo queimará.
Capítulo 05
A energia ainda não havia sido reestabelecida no bloco habitacional dos trabalhadores. Provavelmente, a produção de armas já foi transferida para outras instalações fabris na colmeia, exigindo um redirecionamento para garantir que os dízimos do Imperador não atrasem.
Entro pela porta e tropeço na escuridão familiar até a cozinha.
Vou fazer isso. Tenho que fazer.
Cada vez que pisco, vejo a visão do Anjo me assombrando, abominações uivantes contaminando minha família repetidamente, enquanto imploram pela morte. Cada microssegundo é uma tortura. Ainda assim, faço meus passos o mais lentos possível enquanto me arrasto em direção à cozinha.
Droga, está quente.
Chego à cozinha, tão escura quanto estava na minha visão. Tateio meu jantar, embrulhado em selante, até a garrafa extra de amasec que mantenho escondida no armário. Antes que eu perceba, estou engolindo a bebida ardente como um homem morrendo de sede. A primeira tragada é difícil. A segunda desce mais fácil. Lembro-me da noite em que meu pai morreu... Não, da noite em que se suicidou; ele estava tão bêbado que mal conseguia pronunciar as palavras.
Não estava? O que ele queria me dizer?
Queria poder me lembrar.
O terceiro gole afasta o pior dos pensamentos ruins. O foco falso e familiar da embriaguez se instala em mim. Cerro o maxilar enquanto a névoa estreita minha visão e me faz esquecer meu horror.
— Jacen!
Eu me viro. Uma lanterna ilumina o cômodo. Myra está sentada à mesa da cozinha, esfregando os olhos para afastar o sono.
Seu lindo rosto se converte no sorriso mais largo que já vi desde os dias em que nossos filhos nasceram. Ela pula da mesa, me abraça forte e enterra o rosto no meu peito. Suas bochechas estão molhadas.
— Achei que você estivesse morto. — Myra sussurra. — O que aconteceu?
— O gerador do manufactorum explodiu. — digo, secamente. — Sabotado, suponho.
Ela faz o sinal da águia sobre o peito.
— Pelo Imperador! — sussurra. — Tenho ouvido a vox-net, estão dizendo que milhares morreram. Você está bem? Está ferido?
— Não estou ferido. — digo, incapaz de esconder minha própria descrença. — Estou bem.
Myra enxuga os olhos com a manga.
— Como? Disseram que o manufactorum foi todo destruído.
Paro, visualizando a forma do Anjo em minha mente como se estivesse em minha cozinha, me incitando a cumprir o teste do Imperador.
— Foi um milagre.
Myra me lança um olhar estranho. Então seu rosto se abre em um sorriso satisfeito.
— Estávamos todos rezando por você. Sophya, principalmente. O Imperador atendeu às nossas preces.
Sinto as lágrimas brotando em meus olhos. Cerro os dentes para evitar que meu maxilar trema e a seguro perto de mim para que não veja meu rosto.
— Vou dar um beijo de boa noite nas crianças. Por que você não vai para a cama? Daqui a pouco vou para cama e conto tudo o que aconteceu.
Myra me abraça e me beija, calorosamente, profundamente. Não quero que isso acabe nunca.
— Eu te amo, Jacen! — ela acrescenta enquanto sai da cozinha.
— Também te amo. — digo para as sombras depois que ela já saiu. Tomo um último gole de amasec para forçar o nó na garganta a descer. Vou cambaleando em direção à cama de Sophya. Para cumprir a ordem do Imperador.
———
Cambaleando pela escuridão em direção à cozinha, com as mãos ensanguentadas.
— Anjo! — grito na escuridão. — Anjo, fiz o que o Imperador exige!
O silêncio me saúda.
— Anjo! — volto a gritar. — Apareça, Anjo!
— Estou aqui... — diz uma voz doce atrás de mim. Está aqui. Sempre esteve aqui.
Em outro lugar.
— Eu fiz... — digo, engolindo as lágrimas. — Fiz... o que me pediu...
Dois corações caem das minhas mãos.
— Myra... — sussurro. — Ela ouviu Sophya. Não entendeu. Eu tinha que fazer.
— Você fez. — diz ela das sombras. — E fez maravilhosamente. Melhor do que eu poderia esperar.
— Eu não queria... — digo para as sombras. Não... Não pedi nada disso. Mas o fiz. Agora, o que acontece?
— O que quer dizer, Jacen? — pergunta o Anjo, sua voz soando agradável.
— Sabe o que quero dizer! — respondo, irritado. — Como o Imperador vai... Sabe, me usar para salvar este mundo?
O Anjo faz uma pausa.
— Ah, o planeta será salvo...
Meus pensamentos correm a toda velocidade pela minha mente. O que imaginei que aconteceria? Algo... Divino? Sagrado?
— Mas... Como? Quando? — pergunto, sentindo o sangue em minhas mãos começar a coagular. Moscas zumbem ao meu redor. A náusea me revira o estômago.
— Quando sacrifícios suficientes tiverem sido feitos, Jacen. — diz o Anjo atrás de mim. — Quando rios de sangue afogarem o mundo e os cadáveres dos inocentes ocultarem o sol.
O sangue da minha filha, o sangue da minha esposa, está secando em minhas mãos. Meus filhos ficarão marcados pelo resto da vida, assim como eu fiquei. O horror do que fiz me atinge uma e outra vez.
De repente, sinto a mão gentil da minha mãe em meu ombro.
— Calma, calma... — ela murmura, sua voz mudando repentinamente, aprofundando-se. — Eu entendo. Alguns de nós somos escolhidos para coisas grandes e terríveis...
Abro os olhos lentamente e olho para trás.
A mão no meu ombro é uma garra deformada, carne branca como giz e garras rachadas e amareladas. Seus braços são longos demais, seu corpo magro e murcho. Sua boca é uma bocarra de lampreia sorridente, com presas serrilhadas que choram corrupção. Seus olhos são poços fundos, zumbindo com moscas.
Esta não é minha mãe. Isto é algo vestindo minha mãe como uma pele.
— Assim como eu era.
Minha boca se estica em um grito silencioso enquanto o monstro me puxa para um abraço amoroso. O fogo da bruxaria brilha em seus olhos podres. O riso dos loucos e o lamento dos condenados preenchem meu crânio. O horror abissal da distorção se abre diante de mim, mil vezes mais terrível do que a visão mais assombrosa que eu já vira.
Salivando.
Faminto.
Eterno. — E agora, meu filho... — sibila a criatura que foi minha mãe enquanto me consome. — Podemos ficar juntos para sempre.
Notas:
1. Amasec é uma bebida alcoólica potente, semelhante ao vinho, popular em todo o Império da Humanidade e destilada a partir de diferentes tipos de grãos locais. Sua qualidade pode variar consideravelmente, desde bebidas menores, próprias para uso em bombas incendiárias, até marcas bem envelhecidas, adequadas apenas para a nobreza imperial ou para os servos de mais alta patente do Imperador.
2. Biônicos são substitutos cibernéticos mecânicos ou eletrônicos para membros ou órgãos biológicos humanos. Geralmente, o substituto biônico é mais forte, durável ou eficaz que o original, ou confere ao usuário habilidades físicas novas e/ou aprimoradas. Seu uso é bastante difundido no Império. Todavia são caros e, em sua maioria, limitados a servos valiosos do Imperador, como guerreiros veteranos e oficiais das forças armadas imperiais, adeptos habilidosos, oficiais imperiais de alto escalão, inquisidores, mercadores, etc.
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