Capítulo 08
Na manhã seguinte, Muriel encontrou a criatura flutuando felizmente na banheira.
A água havia reduzido vários centímetros... Devia estar com sede, então voltou a completá-la.
— Como você está hoje? — perguntou, mergulhando a mão na água. A criatura avançou em sua direção, passando o corpo escorregadio por entre seus dedos estendidos. Ao fazê-lo, a sensação familiar a percorreu. Sentiu-se tonta e atordoada, uma sensação persistente de euforia, como se tivesse bebido conhaque de mais.
— Sinto-me melhor do que há anos. — disse à bolha flutuante.
Lá fora, o sol brilhava, o céu azul.
— Você precisa de um nome. — decidiu Muriel, sorrindo. Tentou pensar, repassando todos os nomes de bichinho que já tinha ouvido. Fido, Rover, Grove... Nenhum parecia ideal. Eram todos normais demais, e esta querida criatura era tudo menos normal. Pensou em seus atores e cantores favoritos. Cary Grant, Kirk Douglas, Frank Sinatra... Nada parecia se encaixar.
— Avalon! — disse de repente, batendo palmas de alegria. — Que tal? Depois de Frankie Avalon. — sorriu. — Ah, claro, não deve saber quem é.
A criatura ficou imóvel. Sabia que a estava ouvindo.
— Frankie Avalon era cantor na minha época. Sua voz era maravilhosa. Eu devia ter uns vinte e poucos anos quando ouvi a sua música, Venus, pela primeira vez no rádio. Nossa, eu tinha uma quedinha por ele. — ela se encostou na banheira e deixou a mão na água fria, lembrando-se de ir ao cinema ver Frankie Avalon em seu filme Beach Party, sentado dedilhando um violão, cercada por jovens incrivelmente bonitas de biquíni. Parecia um planeta diferente da sua vida na Escócia.
A criatura se desprendeu da lateral da banheira e se moveu silenciosamente em sua direção. Enrolou-se em sua mão.
Avalon...
— Sim, Avalon. Um nome bonito.
Ao toque de Avalon, a serenidade acolhedora fluiu por ela mais uma vez. Seu corpo relaxou, Avalon se enroscando... Sim, tinha certeza de que era um homem, em volta dela. Seu braço formigava de maneira agradável. Memórias há muito esquecidas ressurgiram, memórias que pensava enterradas. Vislumbres de sua infância, tão vívidos e reais como se tivessem ocorrido ontem. Visões de seus pais, rostos que não via há quase sessenta anos. Velhos amigos que haviam caído na obscuridade voltaram com uma clareza notável. Aqueles primeiros encontros com Billy, o toque hesitante de mãos. Tantas memórias... Tantas. Elas ameaçavam sobrecarregá-la.
Muriel se encolheu com uma beliscada repentina no cotovelo.
— Avalon. — disse em seu tom mais suave. — Está muito apertado. — seu olhar se voltou para a criatura, apertando o braço, e sentiu a picada de algo afiado contra a pele. — Está me machucando!
Houve uma batida na porta da frente.
Avalon a soltou. Muriel observou o sangue escorrer de um pequeno ferimento perfurante em seu braço. As gotas caíram silenciosamente na água, estilhaçando-se com o contato em uma poça carmesim cada vez maior.
— Muriel, você está em casa?
Avalon se aproximou. Seu corpo se contraiu, fazendo delicados ruídos de sucção enquanto lambia o sangue avidamente.
Outra batida, mais insistente desta vez.
— Muriel?
Era a voz de Arthur.
Muriel retirou o braço e o segurou. Ergueu um dedo severo para Avalon.
— Não! — ordenou. — Feio.
Devidamente castigado, Avalon desabou na água.
— Muriel, tudo bem aí? Vou chutar esta porta se não atender!
— Arthur Eastman, não faça uma coisa dessas! — gritou, apertando a mão sobre o corte no braço. Lançou um último olhar preocupado para Avalon e seguiu em direção à porta da frente.
Estava trancada. Engraçado, não se lembrava de ter feito isso. Mas tinha estado tão cansada e tão animada com a descoberta que devia ter feito sem se dar conta. Balançando a cabeça, destrancou a porta e a abriu, onde um Arthur de rosto sério a cumprimentou com um aceno de cabeça.
— Muriel. — disse.
— Oh, Arthur! Fiquei tão preocupada com você. — ela fez um gesto para que entrasse e seguiu pelo corredor, parando para se certificar de que a porta do banheiro estava fechada. Por quê? Não queria mostrar a Arthur o que havia encontrado?
Em breve. Porém ainda não.
— O que aconteceu? — perguntou ao amigo.
— Passei a noite na cadeia. — respondeu Arthur enquanto ia até a cozinha para ferver a água da chaleira. Encostou-se no balcão e acendeu um cigarro.
Muriel o seguiu e colocou a mão em seu braço.
— Eu vi na TV. Sinto muito, Arthur.
Ele se virou, enxaguando uma caneca na pia.
— Ach, sabia. A polícia esperou até a equipe de TV chegar antes de fazer qualquer coisa. Todo esse fiasco foi um golpe publicitário.
— Não está certo.
A chaleira apitou e Arthur serviu duas canecas de chá, entregando uma para Muriel.
— Grant retirou as acusações. — falou, enquanto Muriel aceitava a caneca fumegante com gratidão. Tentou sorrir, contudo seus olhos o traíram. — Sou um homem livre de novo.
— Bem, isso já é alguma coisa.
— É, e o maldito Grant parece um babaca benevolente, enquanto saio da história parecendo um velho louco com uma espingarda. É uma campanha de difamação, nada mais. Qualquer coisa para virar o público contra nós.
Muriel sentou-se e tomou um gole de chá. Sangue frio escorreu por seu braço.
— Você se cortou? — perguntou Arthur enquanto se acomodava na cadeira de Billy e passava a mão cansada pelos cabelos ralos e grisalhos.
Muriel olhou para o braço.
— Ah, não é nada. Devo ter me machucado.
— Deveria colocar um curativo nisso. Aqui, vou pegar um.
Ele se levantou, e Muriel se levantou de um salto.
— Não! — gritou ao se lembrar de que os curativos estavam no armário de remédios do banheiro. — Pode deixar que faço. Você se senta.
Arthur riu baixinho.
— Está com uma aparência animada para uma velha.
Muriel sentiu as bochechas corarem.
— Eu dormi bem.
— Entendo. Me lembra um poema. — Arthur comentou enquanto ela trotava pelo corredor e abria a porta do banheiro. — Mary Rose sentou em um alfinete. — disse, com a voz abafada pelas paredes de pedra. — Mary Rose.
Ela o ouviu rir.
— Entendeu? Sentou em um alfinete e se levantou!
Muriel entendeu. Já ouvira a piada dezenas de vezes, sempre de Arthur, contudo desta vez não respondeu. Avalon estava quase saindo da banheira, seu corpo fazendo um barulho de sucção enquanto subia.
— Fique! — sibilou, acenando com um dedo em advertência.
Ele voltou a se encolher na água.
Fome...
Aquela voz de novo. Muriel encarou a criatura.
— Era você, não era?
Avalon flutuou na superfície, sem dizer nada. Ele tinha falado, não é? Ou era tudo coisa da sua cabeça?
Por que não pode ser os dois?
— Está com fome? — perguntou.
— Você disse alguma coisa? — gritou Arthur da sala de estar.
Muriel olhou para a porta do banheiro, atenta a passos. Não havia nenhum.
— Só falando sozinha. — respondeu.
— Isso é sinal de que estou ficando velha.
Fome...
Ela olhou para Avalon, depois para o ferimento em seu braço, que latejava suavemente.
— Não! — voltou a dizer. Então, com mais gentileza, sussurrou. — Depois.
Encontrou um curativo e o aplicou, seus dedos incomumente ágeis removendo com destreza a proteção adesiva. Lançando um olhar furtivo para Avalon, fechou a porta do banheiro e voltou para a sala.
— Tem certeza de que está bem? — perguntou Arthur.
— Sim, por que não estaria?
Conte a ele sobre Avalon.
Muriel contaria. No entanto Arthur ainda não estava pronto. E, de qualquer forma, Avalon era seu amigo, não dele. Ele a fazia se sentir estranha. Fazia se sentir especial.
— Está meio diferente. — disse Arthur. — Tem um leve rubor nas bochechas.
Muriel fingiu estar ofendida.
— E como eu estava antes? Como se a morte estivesse batendo na porta?
— Ah, vamos, não foi o que eu quis dizer.
— Só estou brincando. — disse ela. Algo espirrou no banheiro e seu coração disparou.
— O que foi isso? — perguntou Arthur. — Tem alguém aqui? — ele sorriu maliciosamente. — Tem um namoradozinho que não me contou?
— Não é nada. — respondeu Muriel rápido demais. — São os canos.
Ela queria ver como Avalon estava. Será que estava tentando escapar pela janela? Ou talvez passando por baixo da porta do banheiro?
— Escute, Arthur, fico feliz que esteja bem, de verdade. Mas... Estou com vontade de ficar sozinha hoje, se não se importar.
Arthur acenou em concordância.
— Sim, tudo bem. Só queria passar por aqui e avisar que cheguei. Se precisar de alguma coisa me liga, ok?
— Ligo. — Muriel lhe deu seu sorriso mais caloroso. — Prometo.
Fome...
Ela ignorou a voz. Arthur não reagiu.
Ele não consegue ouvir.
Ela se levantou e conduziu Arthur porta afora, sem nem esperar que terminasse o seu chá.
— Devo... — começou Arthur, porém Muriel fechou a porta, puxou a corrente e correu de volta para o banheiro. O cômodo estava imerso em reflexos de arco-íris, roxos, azuis e cores novas e estranhas que não conseguia identificar.
— Oh, Avalon, é maravilhoso! — exclamou.
As cores se retorciam e giravam, tão brilhantes que acreditou que poderia estender a mão e tocá-las. Tentou, sentindo um calor envolvê-la, brilhos dourados em cascata diante de seus olhos.
— Muriel.
Seu estômago embrulhou. Ao se virar, olhando ao redor, não havia ninguém lá.
— Arthur?
Contudo sabia que não era Arthur.
— Aquilo era... — ela respirou fundo. Entendia que o que estava perguntando era absurdo, no entanto aquela voz não estava em sua cabeça. Havia ecoado pelas paredes. Estava ali, no banheiro.
— Foi você? — perguntou à criatura na banheira.
Avalon não respondeu, apenas a encarou com seu olho leitoso e sem piscar.
— Diga-me se foi! — retrucou. — Vamos!
O vento sacudia as vidraças, assobiando pelas frestas. Muriel caiu de joelhos e estendeu a mão para dentro da banheira, tateando em busca de Avalon, tentando agarrá-lo.
— Foi? Me responda!
Um fio de sangue escorreu por seu braço, vindo de baixo do curativo. Chegou até o pulso antes de pingar em Avalon. O ponto vermelho penetrou na forma da criatura, fluindo por centenas de veias ramificadas. O olho de Avalon se arregalou. Abaixo dele, o corpo pegajoso pareceu se despedaçar em uma boca quase humana. O rasgo se abria e fechava, proferindo palavras não ouvidas enquanto o sangue de Muriel pingava continuamente no orifício.
— É isso que você quer? Meu sangue?
Seus dedos arrancaram o curativo e pressionaram sobre o ferimento. O sangue borbulhou na superfície, escorrendo pelas linhas de sua pele. Avalon sorveu cada gota.
Os olhos de Muriel ficaram turvos. Sentiu que estava ficando louca. Beliscou com mais força, entretanto nada mais saiu.
Avalon se afastou.
— Fale! — pediu. — Sei que foi você!
Ao se levantar, com as pernas tremendo sob o corpo, cambaleou até o armário espelhado. Aquela voz... Aquela voz dolorosamente familiar. Tinha que ter vindo de Avalon. Precisava ouvi-la de novo. Mais do que qualquer coisa na Terra, precisava ouvi-la outra vez.
Suas mãos vasculharam o conteúdo do armário, fazendo frascos de comprimidos e tubos de pomada caírem na pia até que encontrou o que procurava.
Aquela voz. Não podia ser...
Pegou uma pequena caixa de plástico, abriu-a com dedos trêmulos e arrancou uma das velhas lâminas de barbear de Billy de dentro. A caixa caiu no linóleo enquanto Muriel pairava sobre Avalon.
Lágrimas escorriam por seu rosto enquanto agarrava a lâmina.
— Se é disso que precisa. — soluçou. — Se meu sangue for o necessário para ouvi-lo uma última vez...
Muriel pressionou a lâmina contra a pele flácida e fechou os olhos.
Algo se enganchou em seu pulso.
Ela abriu os olhos e descobriu que um membro magro havia emergido de Avalon. Enrolou-se em seu pulso, encontrou a lâmina entre seus dedos e a arrancou de sua mão. A lâmina disparou de sua mão, voando pelo ar e se cravando na parede, onde vibrou silenciosamente.
Outro tentáculo semelhante a uma videira emergiu de Avalon, enrolando-se na nuca de Muriel, puxando-a para perto até que seu rosto estivesse a centímetros dele. Ele não tinha cheiro perceptível. O tentáculo pressionou sua têmpora, prendendo-se com a suave pressão de uma massagem.
O olho enorme de Avalon se arregalou. Olhando direto para Muriel, através dela, para dentro de sua alma... E então o olho se fechou.
A boca se abriu outra vez e Avalon proferiu uma palavra.
— Muriel.
A familiaridade da voz a abalou. Era como revisitar um lar de infância, mas encontrá-lo inalterado e tal qual se lembrava em seus sonhos.
— Billy! — disse, enquanto grandes soluços sacudiam seu corpo, seus ombros se contraindo convulsivamente. Olhou para a mancha oleosa na banheira, e esta a encarou de volta.
— Meu Deus! — disse ela. — Você está em casa.
———
Muriel ficou sentada perto da banheira por horas, empoleirada na fria tampa de cerâmica do vaso sanitário até que seus ossos gritassem por misericórdia, porém Avalon permaneceu em silêncio. As cores que emanava haviam desaparecido mais uma vez, seu corpo brilhando sob a lâmpada como geada em uma manhã de inverno.
Às seis horas, entrou na cozinha. Não comera desde o café da manhã, mas nenhuma pontada de fome lhe atormentava o estômago. Duas fatias de torrada com manteiga depois, e estava pronta para dormir.
Enquanto fervia a chaleira para sua bolsa de água quente, se perguntou... Seria mesmo a voz de Billy? Sabia que não podia ser.
Billy McAuley havia desaparecido no mar há doze longos anos. Seu marido havia acordado cedo e saído da casa sem acordá-la, iniciando a caminhada de três quilômetros até o porto além dos penhascos. Seu próprio despertador havia tocado às sete, e se lembrava distintamente de estar parada perto da janela da cozinha com uma caneca de chá quente, observando o barco de Billy passar em sua rota familiar antes de desaparecer no mar. Trinta e seis horas depois, o barco foi encontrado à deriva no Mar do Norte por um navio que passava.
Não havia ninguém a bordo.
Muriel terminou a torrada, passou o prato na torneira e verificou Avalon uma última vez. Não havia nada a relatar. Este seguia flutuando ali, cinzento e sem vida, com os olhos fechados. A água batia suavemente na lateral da banheira. Lá fora, as máquinas continuavam a trabalhar, despejando sua fria violência industrial sobre a terra. Muriel abriu as cortinas e espiou. A baía estava iluminada como uma árvore de Natal, com luzes vermelhas e amarelas piscando e pulsando. Uma serra zumbia em intervalos irregulares enquanto as esteiras dos caminhões revolviam a areia, carregando troncos de árvores mortas para Deus sabe onde, um cortejo fúnebre para a própria natureza, com Muriel como a única enlutada.
Fechou as cortinas e foi para o quarto. Um pequeno espelho estava pendurado acima da cômoda. Limpou a fina camada de poeira e se olhou atentamente.
— Você está ficando louca, sua vassoura velha. — disse.
Depois de um tempo, e quando as lágrimas começaram a voltar a escorrer pelo seu rosto, se enfiou debaixo das cobertas e se enrolou nelas, colocando a bolsa de água quente entre os pés. Uma chuva leve tamborilava no telhado e vazava para uma grande bacia de plástico no corredor. Seria uma noite longa e fria.
— Boa noite, Avalon! — ela chamou.
Não houve resposta.
Muriel fechou os olhos. Pelo menos ouvira a voz de Billy uma última vez. Ah, o que não daria para passar mais um dia juntos! Um último dia perfeito, caminhando de mãos dadas pelas dunas. Um abraço carinhoso. Um beijo.
Faria qualquer coisa para abraçá-lo mais uma vez.
Qualquer coisa.
***
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com

Nenhum comentário:
Postar um comentário