Primeira Temporada — Capítulo 07: O Flautista
Rusty Quill Apresenta “Os Arquivos Magnus”
Episódio sete: O Flautista
JONATHAN SIMS
Depoimento do Sargento Clarence Berry, sobre seu tempo servindo com Wilfred Owen na Primeira Guerra Mundial. Depoimento original prestado em 6 de novembro de 1922. Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista-Chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
JONATHAN SIMS (Depoimento)
Muitas pessoas me chamam de sortudo, sabia? Poucos sobreviveram inteiros à guerra inteira. E se você descontar as queimaduras, então eu de fato fiz exatamente isso. Menos ainda passaram quatro anos na frente de batalha, como eu fiz. Nunca fui enviado para tratamento por traumatismo craniano ou ferimentos, e mesmo meu encontro com um lança-chamas alemão só me levou a um hospital da linha de frente em Wipers. Ainda estava naquele hospital de campanha quando a luta começou no Somme, então suponho que também tenha sido sorte. Quatro anos... Às vezes, sinto que sou o único que viu todo o espetáculo do começo ao fim, como se só eu conhecesse a Grande Guerra em toda a sua terrível glória. Mas, no fundo, sei que essa honra, por mais que seja, cabe ao Wilfred. Você não imaginaria isso pelos seus poemas, porém, no total, seu tempo na frente de batalha não passou de um ano. Ainda assim ele conheceu a guerra de uma forma que nunca conheci. É sem dúvida a única pessoa que conheço que já viu O Flautista.
Cresci pobre nas ruas de Salford, então entrei para o exército assim que tive idade suficiente. Sei que já ouviu histórias de rapazes corajosos que se alistaram aos 14 anos, contudo foi antes do início da guerra, então não havia tanta demanda por mão de obra e os recrutadores eram muito mais escrupulosos em garantir que os alistados fossem maiores de idade. Mesmo assim, eu era quase magro demais para me aceitarem e mal atingia o peso necessário. Entretanto, no final, consegui passar e, após meu treinamento, fui designado para o Regimento de Manchester, 2º Batalhão, e não demorou muito para que fôssemos enviados para a França com a Força Expedicionária Britânica. Vocês parecem pessoas instruídas, então tenho certeza de que leram nos jornais como foi. Logo, no entanto, as trincheiras foram cavadas e o tédio começou a se instalar. Ora, tédio é bom, entenda, quando as alternativas são bombas, atiradores de elite e ataques com gás, mas passar meses sentado em um buraco encharcado no chão, torcendo para que seu pé não comece a inchar, bem... É um terror silencioso todo seu.
Wilfred chegou até nós em julho de 1916. Não conheço muito bem sua história, porém era óbvio que vinha de uma família boa o suficiente para ser designado como segundo-tenente em estágio probatório. Eu era sargento na época, então tinha a função de auxiliá-lo com todo o tipo de conselho e apoio que um novo oficial precisa de um suboficial com dois anos de experiência. Apesar disso, admito que não gostei do homem quando o conheci. Ele era superior a mim, e à maioria dos outros na trincheira, tanto em termos militares quanto sociais, e parecia tratar toda a questão com um desprezo superficial. Há uma espécie de entorpecimento que se adota depois de meses ou anos de bombardeios, uma inexpressividade deliberada que, creio, o ofendeu. Ele era invariavelmente educado, muito mais do que estou acostumado na lama de Flandres, onde as conversas, tais como eram, eram grosseiras e sombrias. Contudo, sob essa polidez, eu o sentia rejeitar de imediato qualquer sugestão que lhe desse ou qualquer relatório que lhe fizesse. Não me surpreendeu quando mencionou que escrevia poesia. Para ser bastante honesto, esperava que ele morresse em uma semana.
Para crédito de Wilfred, conseguiu sobreviver quase um ano antes que algo horrível lhe acontecesse, e na primavera seguinte, me arriscaria a dizer que quase poderíamos nos chamar de amigos. Ele vinha compondo poesias durante esse período, é claro, e às vezes as lia para alguns dos homens. Eles costumavam gostar, no entanto, para mim, as achava terríveis... Havia um vazio nelas, e cada vez que tentava expressar a guerra em palavras, soava banal, como se não houvesse alma no que tinha a dizer. Era recorrente que falasse sobre suas aspirações literárias e como ansiava por ser lembrado, por pegar o que aquela guerra de fato era e imortalizá-la. Se eu fosse dado a voos de fantasia, ouso dizer que chamaria suas palavras de portentosas. Quando falava assim, tinha o estranho hábito de se perder no meio da conversa com um aceno de cabeça, como se sua atenção tivesse sido desviada por um som distante.
O degelo da primavera havia acabado de passar quando aconteceu, e estávamos na ofensiva. Nosso batalhão estava perto de Savy Wood quando as ordens chegaram... Deveríamos atacar a Linha Hindenburg. Nosso alvo era uma trincheira no lado oeste de St. Quentin. Foi uma marcha silenciosa. Mesmo nesse estágio, muitas vezes ainda havia alguma excitação quando as ordens de ação eram dadas, apesar de quase sempre ser abafada por aquele medo sufocante que se sente ao esperar o apito. Entretanto, naquela manhã, havia algo diferente no ar, um pavor opressivo. Já tínhamos feito esse ataque antes e sabíamos que a mudança do vale nos expunha ao fogo de artilharia. E a artilharia sempre foi a parte mais assustadora para mim. Baionetas você podia desviar, balas poderia se esquivar, até gás podia bloquear se tivesse sorte, mas artilharia? Tudo o que pode fazer contra artilharia é rezar.
Até Wilfred sentia isso, pude perceber. Ele costumava ser bastante falador antes do combate. Mórbido, porém sempre falante. Naquela manhã, não o ouvi dizer uma palavra. Tentei conversar e animá-lo, como é dever de um sargento, embora este apenas ergueu a mão para me acalmar e virou a cabeça para ouvir. Na época, não sabia o que estava ouvindo, contudo aquilo o manteve em silêncio. Ainda quando chegamos ao topo da serra, e o resto de nós tentou abafar o estrondo ensurdecedor da artilharia com nosso próprio grito de ataque, ele seguiu sem emitir um único som.
O chão tremeu com o impacto dos projéteis de morteiro, e corri de trincheira em cratera em trincheira, mantendo a cabeça baixa para evitar as balas. Enquanto corria, senti uma dor aguda no tornozelo e caí para a frente na lama. Olhando para baixo, vi que havia sido pego por um pedaço de arame farpado, meio escondido pelo solo úmido revolvido. Senti uma onda de pânico começar a me dominar e tentei freneticamente remover o arame da minha perna, mas só consegui arranhar minha mão com força. Olhei ao redor, desesperado, para ver se havia mais alguém por perto que pudesse ajudar. E ali, a menos de vinte metros à minha frente, vi Wilfred parado, o rosto inexpressivo e a cabeça balançando ao som de um ritmo inaudível. E então ouvi... Suavemente sobrepondo-se ao pulsar dos morteiros, ao estalar dos canhões e aos gemidos dos moribundos, uma melodia tênue e estridente. Não saberia dizer se era gaita de foles, flauta de pã ou algum instrumento que nunca tinha ouvido antes, contudo seu som sibilante era inconfundível e me atingiu com uma tristeza profunda e um medo suave e crescente, e naquele momento soube o que estava prestes a acontecer.
Olhei para Wilfred e, quando nossos olhares se encontraram, vi que ele também sabia. Ouvi um único tiro, muito mais alto do que qualquer outro, e o vi ficar rígido, com os olhos arregalados. E então a explosão do morteiro o atingiu e Wilfred se perdeu em uma erupção de lama e terra. Tive bastante tempo para lamentá-lo, deitado naquele buraco terrível até o anoitecer, quando pude soltar minha perna da maneira mais silenciosa e gentil possível antes de rastejar de volta para nossa trincheira. Foi um processo lento; cada vez que um sinalizador disparava, só conseguia ficar imóvel e rezar, no entanto o bom Deus achou por bem me deixar chegar à nossa linha relativamente ileso. Em pouco tempo fui levado para o hospital de campanha, que estava sobrecarregado como sempre. Eles não tinham muitos remédios ou pessoal de sobra, e com certeza não havia nenhum leito disponível, então lavaram meus ferimentos com iodo, os enfaixaram e me mandaram embora. Disseram-me para voltar se gangrenasse. Dei uma olhada ao redor para ver se conseguia encontrar Wilfred, todavia não havia sinal seu em lugar nenhum. Perguntando pela trincheira, ninguém o vira retornar entre os feridos, então comecei a me conformar com o fato de que estava morto. Não foi o primeiro amigo que perdi para os alemães, nem mesmo o primeiro que vi morrer na minha frente, entretanto algo naquela música estranha que ouvi momentos antes daquela explosão permaneceu em minha mente e me fez pensar em Wilfred em muitos momentos de silêncio.
Provavelmente cerca de uma semana e meia depois, ouvi gritos vindos do fundo da trincheira. Era um grupo de reconhecimento que estava fazendo o reconhecimento do rio que corria perto de Savy Wood. Pelo jeito tinham encontrado um oficial ferido caído em um buraco de bomba e o trouxeram de volta. Fui até lá e fiquei surpreso ao ver que era Wilfred. Seu uniforme estava rasgado e queimado, estava coberto de sangue e seus olhos tinham uma expressão distante, vazia, mas estava sem dúvida vivo. Cavalguei com ele de volta ao hospital de campanha, junto com o cabo do esquadrão que o havia encontrado. Pelo visto ele esteve deitado naquele buraco por dias, desde a batalha. Eles o encontraram lá, meio morto de desidratação e fadiga, coberto pelo sangue de outro soldado. Seja qual for a granada que criou o buraco em que acabou, claramente aniquilou alguma outra pobre alma, e foi em seus restos sangrentos que Wilfred ficou deitado por quase duas semanas. Esperei do lado de fora da tenda do hospital enquanto estava sendo tratado. O médico saiu logo, com uma expressão grave no rosto, me disse que o tenente estava fisicamente ileso, algo que considerei na época nada menos que um milagre, porém que tinha um dos piores casos de choque de granada que já havia encontrado e teria que ser enviado de volta à Inglaterra para se recuperar. Perguntei se podia vê-lo, e o médico consentiu, apesar de ter me avisado que Wilfred não dissera uma palavra desde que fora trazido.
Assim que entrei na tenda médica, fui tomado pelo doce aroma de carne em decomposição e pelos gemidos de dor e desespero. O cheiro forte do desinfetante trouxe de volta memórias desagradáveis de ataques com gás cloro. Mesmo assim, enfim encontrei o caminho até a cama de Wilfred e, de fato, lá estava ele, olhando em silêncio para o mundo, embora com uma intensidade que me alarmou. Segui seu olhar até uma cama próxima e lá vi um soldado que não reconheci. Sua testa estava escorregadia de suor e seu peito subia e descia rapidamente, parando abruptamente. Percebi, sobressaltado, que um homem acabara de morrer e ninguém, exceto Wilfred, havia notado.
Tentei puxar conversa, e disse algumas gentilezas sem sentido.
— Como vai, meu velho? Ouvi dizer que passou por um aperto. Que bom que encontrou um buraco de granada.
Todo esse tipo de bobagem. Nada daquilo pareceu produzir qualquer reação sua, e em vez disso ele se virou para mim e, depois de um longo tempo, apenas disse.
— Eu conheci a guerra.
Respondi que certamente sim, não são muitos os que escapam de algo assim e deitado naquele buraco por tanto tempo, cercado por toda aquela morte... Bom, sem dúvida tinha conhecido a guerra e era um negócio horrível. Contudo Wilfred apenas balançou a cabeça como se eu não tivesse entendido, e para ser honesto, estava começando a achar que não, e então voltou a me dizer que “conheceu a guerra”. Disse que não era mais alto do que eu. Ocorreu-me que talvez estivesse descrevendo alguma alucinação terrível que o atingiu enquanto estava deitado naquele lugar miserável, e pedi que me contasse como era a guerra.
Lembro com exatidão das suas palavras. Wilfred me disse que tinha três faces. Uma para tocar suas flautas de osso entalhado, uma para gritar seu grito de guerra moribundo e uma que não abria a boca, pois quando o fazia, sangue e terra encharcada jorravam como uma cachoeira. Os braços que não tocavam as flautas seguravam lâminas, armas de fogo e lanças, enquanto outros erguiam as mãos em súplica inútil por misericórdia, e um em uma saudação firme. Vestia um casaco esfarrapado de lã, verde-oliva onde não estava manchado de preto, e por baixo, nada se via além de um corpo espancado, retalhado e baleado, até que nada restasse além dos próprios ferimentos.
Já tinha ouvido o suficiente àquela altura e falei para Wilfred, no entanto, se me ouviu, não deu nenhuma indicação. Continuou me contando que a guerra, “o Flautista”, viera buscá-lo, e ele implorara para ficar. A coisa havia parado de cantar por apenas um momento e, com um dos braços, estendeu-se e lhe entregou uma caneta. Disse que sabia que um dia ela voltaria para buscá-lo, todavia que agora também viveria para tocar sua melodia. O jeito como me olhou naquele momento foi o mesmo que me olhara antes do projétil atingir o alvo, e por um instante poderia jurar que ouvi aquela música na brisa outra vez.
Parti quase imediatamente depois disso e, mais tarde, me disseram que ele havia sido enviado de volta à Grã-Bretanha para se recuperar em Craiglockhart. Os outros homens reclamaram das regalias dos oficiais e das boas férias para o Tenente, mas não sabiam pelo que ele havia passado, e eu mesmo achei muito difícil invejá-lo. A certa altura, perguntei a alguns dos soldados que o trouxeram de volta se Wilfred estava segurando uma caneta quando o encontraram, porém me disseram que não. A única coisa que encontraram por perto foram as etiquetas do morto entre seus restos mortais. Um homem chamado Joseph Rayner. E por um longo tempo foi tudo. Wilfred estava de volta em casa, recuperando-se e assumindo tarefas mais leves, enquanto segui me arrastando pela lama de Flandres. Eu mesmo passei por alguns percalços... Incluindo o do lança-chamas que me marcou tão distintamente. Poderia ter sido pior, é claro; se a chuva não tivesse quase liquefeito a lama da terra de ninguém, teria entregado minha alma ao Diabo. Comecei a notar algo entre as tropas, no entanto. Toda vez que nos alinhávamos para ir até o topo, eu os observava, olhava em seus rostos. A maioria deles não demonstrava nada além do mais absoluto medo, é claro, contudo alguns pareciam distantes. O apito os assustava e, com os olhos arregalados, eles avançavam. Já tinha visto isso antes de toda aquela história com Wilfred, sempre presumi que fosse apenas a mente tentando sufocar a probabilidade de sua própria morte. Agora, quando observava, percebi que não conseguia deixar de notar a leve inclinação de cabeça, como se estivessem aguçando os ouvidos para ouvir uma melodia distante. Aqueles homens nunca conseguiram voltar para as trincheiras.
Você conhece a expressão “pagar o pato[1]”. Pensei muito nela durante aqueles muitos meses... A dívida de Hamelin, que por sua ganância teve seus filhos tirados deles, para nunca mais serem devolvidos. Sabia que Hamelin é um lugar real na Alemanha? Sim, não muito longe de Hanover, pelo que me lembro. Tivemos um prisioneiro de lá uma vez, queria perguntá-lo sobre o velho conto de fadas e o que sabia, se é que sabia alguma coisa sobre O Flautista. O pobre coitado não falava uma palavra de inglês e morreu de um ferimento infeccionado por estilhaços alguns dias depois. Passou seus últimos minutos cantarolando uma melodia familiar. Naquela noite, enquanto nos arrastávamos pela lama e metal quebrado em outro ataque inútil, comecei a me perguntar: éramos nós as crianças roubadas de seus pais pela melodia do Flautista? Ou éramos nós os ratos que foram levados ao rio e se afogaram porque comeram demais dos grãos dos ricos? Ainda assim, essas são reflexões para poetas, entre os quais não estou incluído. Todavia, acompanhei o trabalho de Wilfred e fiquei surpreso ao ver o quanto havia mudado desde sua partida. Onde antes poderia ter sido descartado como frívolo, agora havia uma tragédia que fluía das palavras. Mesmo agora, não consigo ouvir “Exposure[2]” sem estar de volta àquela maldita trincheira no inverno. E o público claramente sentiu o mesmo, já que um dos poucos jornais com os quais conseguimos falar publicou um extenso artigo elogiando sua primeira coleção. Apesar de tudo, havia algo que me incomodava.
Wilfred retornou ao 2º Batalhão de Manchester em julho de 1918. Era evidente o tanto que havia mudado desde o tempo em que esteve fora e parecia estar de bom humor, embora conversássemos pouco mais, e quando olhou para mim, vi em seus olhos um medo que ele rapidamente escondeu. A guerra estava se aproximando do fim naquele momento. Havia uma fadiga que podia ser sentida em todos os lugares; até as metralhadoras inimigas pareciam mais lentas e relutantes em seus disparos, mas isso incitou nossos comandantes a nos incitar a ações cada vez mais agressivas. Uma tentativa desesperada de forçar a Alemanha a se render, suponho, e nossos ataques cresceram até o clímax.
No primeiro dia de outubro, recebemos ordens de atacar a posição inimiga em Joncourt. Lembro-me de que o tempo naquele dia estava lindo, um último dia de sol antes da chegada do outono. Atacamos com algum sucesso, pois acredito que a artilharia alemã não estava alinhada corretamente, e pela primeira vez desde seu retorno me vi lutando ao lado de Wilfred. Posso dizer sem mentir que, em toda a guerra, nunca vi um soldado lutar com tanta ferocidade quanto a que vi nele naquele dia. Apresso-me a acrescentar que essa afirmação não é feita com admiração... A selvageria que vi enquanto atacava um homem com sua baioneta... Prefiro esquecer. Ao atacar, ele uivou um terrível grito de guerra e, por um instante, poderia jurar que o vi projetar uma sombra que não era a sua. Li no jornal que ele ganhou a Cruz Militar por aquele ataque.
Um mês depois, acordei e o encontrei sentado ao lado da minha cama. Seus olhos me encaravam, sem maldade, embora houvesse algo em seu olhar que me deixou desconfortável.
— Está quase no fim, Clarence. — ele me disse.
Respondi que sim, parecia que tudo estava chegando ao fim. Wilfred sorriu e balançou a cabeça. Ficou sentado ali em silêncio por algum tempo. Em certo momento, um clarão irrompeu no céu lá fora, e uma quantidade suficiente daquela luz vermelha intensa entrou pela porta improvisada do abrigo para que eu visse que Wilfred estava chorando. Sabia que estava ouvindo a melodia do Flautista. Ele me perguntou se eu a tinha ouvido, e disse que não, que não tinha ouvido, e que não tinha certeza se alguma vez realmente ouvira. Ele assentiu e disse que não sabia qual de nós era o sortudo, e eu também não. Continuo sem saber, na verdade.
Wilfred Owen morreu cruzando o canal em Sambre-Oise dois dias depois. Não era para haver muita resistência, se é que havia alguma, mas alguns dos soldados estacionados lá revidaram. Eu me vi agachado atrás dele enquanto o Capitão, que havia sido baleado no quadril, era puxado para um lugar seguro. Enquanto nos preparávamos para atacar, Wilfred parou de repente e se virou para mim com um sorriso no rosto. Naquele momento, vi um fio de sangue começar a escorrer de um buraco aberto em sua testa. Sinto que devo deixar isso claro... Já vi muitas pessoas serem baleadas. Sei como é e como um buraco de bala aparece. Porém aqui, o buraco de bala apenas se abriu, como um olho, e ele caiu no chão, morto. Mais tarde, me disseram que foi naquele dia que as primeiras propostas de paz foram feitas entre as nações, e o Armistício foi assinado quase exatamente uma semana depois. Fomos enviados para casa logo depois.
Acredito que não foi apenas naquele dia, como naquele exato momento, quando Wilfred caiu, que a paz enfim foi assegurada. Ninguém pode me convencer do contrário. O Flautista o poupou antes? Só o usou, para depois descartá-lo? Não sei, e tento não pensar muito a respeito. Agora tenho uma esposa e um filho a caminho, contudo ainda tenho pesadelos às vezes. O desfile do Dia do Armistício passou em frente à minha casa no ano passado, e tive que fechar bem a janela quando a banda militar passou. Não era uma música que eu gostasse de ouvir.
JONATHAN SIMS
Depoimento encerrado.
Bem, se mais evidências fossem necessárias da desorganização da minha antecessora, aqui as temos. Um depoimento de 1922, arquivado em meados dos anos 2000. Obviamente, não há muita pesquisa ou investigação adicional a ser feita em um caso com quase cem anos, ainda mais quando envolve uma figura tão bem documentada como Wilfred Owen. Mesmo assim, uma história bastante interessante, e sinto que reconheço o nome “Joseph Rayner” de algum lugar, embora não consiga dizer de onde. Mandei devolver a caixa ao seu devido lugar nos arquivos.
Fim da Gravação.
Notas:
1. Expressão idiomática que faz referência ao conto folclórico O Flautista de Hamelin.
2. Um dos poemas escritos por Wilfred Owen sobre a Primeira Guerra Mundial.
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